segunda-feira, maio 21, 2007

URBE - 30

VERÃO

Parei um instante ouvindo o som suave das folhas a cair chocando-se. Observei o trabalho das formigas, sempre gostei de observar seu trabalho, e com o dedo esmaguei algumas, sempre gostei de esmagar formigas também. Fixei os olhos em uma gota d’água prestes a cair e acompanhei sua trajetória até a absorção total. Vi cada fase de sua queda. No solo pude discernir sua divisão em milhares de gotículas e cada uma penetrando no solo absorvidas por ele. Evitei a monotonia do dia ansiando pelo fim da noite.

Troquei um corpo por um pedaço de papel. Às vezes fazia isso como uma forma de conseguir um contato humano sem me comprometer. Ri, diverti-me e admirei a beleza exterior que ela me mostrava apenas por estar presente. Do toque cálido a sentir a vida sob a pele. O calor sensual que queimava aos poucos subindo por meu corpo a cada toque em sua pele. Esquecemo-nos quem éramos, nos fundimos aos poucos em um só ser entregues sem conceitos aos nossos toques humanos e fomos levados pelo intenso prazer do momento sendo apenas macho e fêmea, homem e mulher, yin e yang.

Mais tarde enquanto refletia fumando um cigarro solitário em meu quarto milimetrei o espaço a minha volta. Minha mente confusa que não mais analisava palpitava intensamente passando de um pensamento a outro. A luz que penetrava no quarto à noite misturava-se aos ruídos vindos da rua inquietando meu ser. Grandes negócios, toneladas de papel. Carros novos, apartamentos também. Empregados que rodeavam, luxo, ostentação, comércio dirigido. Apenas as lembranças de tempos melhores.

Caminhando sem rumo, em silêncio, eu tocava a realidade com o olhar. O metal frio entortou a carne provocando um arrepio vindo da base da espinha fazendo-me despertar. O silêncio continuava, o ambiente esterilizado, pouco a pouco, aproximava-nos. A normalidade se mantinha até o próximo choque.

Milhões de seres humanos caminhavam, a mistura de suas vozes, pés no chão indecifrável som. Ônibus, carros, bicicletas, crianças, velhos, mulata, japonês, asfalto, cimento, discórdia. A sombra num canto. Quatro milhões e duzentos mil rostos em cinco meses, nem mesmo um dia para aliviar a tensão. Sol, vento, um pouco de chuva. O ciclo, a luz vermelha era trocada por uma verde. Os carros paravam, as pessoas atravessavam divididas em duas frentes de mesma direção e sentidos contrários. Trocava-se a luz verde pela vermelha. Início de operação, tempo de duração variável. Levava-se em conta o fluxo de carros.

Falei baixo, sussurrei, fiz sinais, não falei. Esperei que se cansasse e desistisse. Escondi-me, cobicei a vida alheia. Rodeei-me de valores, ouro principalmente. Desprezei os seres inferiores, exterminei-os quando possível. Eles nem sequer tinham uma alma para cultivar. Aprimorei meu intelecto e refleti. Não enfrentaria um olhar a menos que fosse para destruir. Menti, fingi. Suguei-lhes toda a energia e canalizei-a para meus objetivos. Nutri-me de suas mortes. Usei-os, pois para isso existiam.

Teci os fios separados, unindo-os entre si. Fios diferentes, tecidos em lugares diferentes, em condições diferentes, em tempos diferentes. Entrelacei-os, sem procurar o porque. Lembrei-me da gota d’água, sua pureza impura. Abriguei todo o ser nesse universo de água deslocando-o para nutri-lo. Viagem sem retorno, viagem sem fim.