ARCEBURGO - 3
– 07/07/85 – primeiro dia –
Dia
O cansaço da viagem da noite anterior ainda persistia em meu corpo. O sol ainda levaria algumas horas até se apresentar inundando a natureza ao redor. Saí do saco de dormir a um canto do cômodo que servia também de sala. Troquei-me rapidamente na escuridão. Ouvia o som dos utensílios na cozinha e a conversa baixa de Marcelo e Mara. Esfregando o rosto e me espreguiçando entrei na cozinha para o primeiro bom-dia em nossa pequena comunidade.
Mara prontamente pegou a chaleira grande e rumou para o estábulo de nosso vizinho onde pegaria o leite para o café da manhã. Tomei uma grande xícara de café enquanto conversava com Marcelo acertando o que faríamos naquele primeiro dia. Já despertos começamos então a executar a primeira tarefa do dia. Fomos até o poço, joguei o balde ao fundo e o puxei para cima pela corda cheio de água. Despejei a água em um balde que Marcelo segurava e joguei novamente o balde ao fundo do poço para puxar mais água. Enquanto isso Marcelo corria com seu balde para regar a primeira muda frutífera no recentemente plantado pomar.
Quando Mara chegou estávamos suados e na metade do trabalho de regar as mudas. Ela começou a preparar o café da manhã. Quando terminamos eu e Marcelo pegamos as ferramentas, enxadas, enxadões, foices e facões, os afiamos e partimos para nossa primeira tarefa no campo. Os primeiros raios solares iluminavam fracamente o céu, a névoa que cobria os vales começava a se dissipar. Essa claridade nos permitia observar o relevo local e traçar nossa estratégia de trabalho enquanto percorríamos o leito seco do córrego que cortava a propriedade.
Capim narpiê cobria várias partes do leito do córrego e, além de sugar a pouca água, formava barreiras que impediria o fluxo de água quando resolvêssemos o problema da represa feita pelo dono anterior da propriedade. Começamos a trabalhar em touceiras diferentes de capim, usando primeiro as foices para limpar o terreno e ter uma melhor noção de como fazer. A seguir ouvia-se nossa respiração pesada, o som do enxadão penetrando na terra e nossos abafados gritos de força. Assim destocamos as duas primeiras touceiras de capim narpiê e terminamos banhados em suor. As primeiras bolhas apareceram nas mãos.
Foi quando ouvimos um bater de panelas e o grito de Mara que nos chamava para o café da manhã. A mesa farta com variados alimentos macrobióticos, estranhos para mim. A luz do sol entrando pela janela aberta refletindo-se em tudo e o cheiro da lenha queimando no fogão a um canto criando uma atmosfera quase de sonho, irreal de tão real e diferente. Comemos inebriados com a luz e os sabores, a conversa animada, palavras cheias de expectativas.
Terminamos o café da manhã e deitamos por alguns minutos no chão frio da sala. Não chegamos a cochilar, apenas deitamos e relaxamos até o sono começar a querer nos invadir. Quando sentimos o peso do sono saltamos em pé e nos preparamos novamente para continuar nosso trabalho com o narpiê. Limpamos e afiamos nossas ferramentas e partimos para o córrego seco. Eram nove horas da manhã, estávamos em pé desde as quatro e trinta.
Trabalhamos duro por toda a manhã, o sol foi tomando uma posição cada vez mais vertical. As batidas cadenciadas, o suor em profusão, os músculos se contraindo e a touceiras caindo uma a uma e formando um desenho ordenado quando as amontoávamos para depois carregar até a composteira.
Às quatorze horas o som da batida na panela nos avisou que o almoço estava pronto. Nessa altura do dia estávamos como que hipnotizados pelo trabalho braçal constante. As enxadas subindo e descendo em um ritmo próprio, alheio a nossos corpos, a nossa vontade. Paramos e olhamos em direção à casa solitária no meio do campo. Suas paredes brancas refletiam a luz do sol de inverno acrescentando um estranho matiz. O suor colando nossas roupas a nossos corpos, as mãos doloridas, os músculos contraídos.
Juntamos nossas ferramentas e caminhamos satisfeitos e famintos rumo à casa. Mara nos aguardava com um delicioso e belo almoço macrobiótico. Senti falta da carne vermelha e dos carboidratos costumeiros. Por outro lado a beleza estética da comida realçada pela luminosidade de inverno e associada aos aromas que emanava estimularam meu apetite. Comemos inicialmente em silêncio, até percebermos o quanto estávamos famintos pelo primeiro dia de trabalho árduo. Rimos de nossa condição.
Após o almoço e um delicioso café moído na hora, me sentei no batente da porta da cozinha, enrolei um cigarro e entre uma tragada e outra observava minhas mãos e as bolhas que nelas se formavam deixando-as doloridas. Foi então que chegou nosso vizinho das vacas. Sorriu com seus dentes exageradamente brancos destacando-se em seu rosto escurecido pelo sol, pelo frio, pelo calor, pela sucessão de estações exposto ao clima implacável. Perguntou como iam “os meninos da cidade”. Riu ao ver minha expressão enquanto eu contemplava minhas mãos em bolha.
Minhas mãos não se abriam totalmente devido às bolhas e à dor. Pareciam as garras de um falcão em vôo, inúteis, incapazes de segurar qualquer coisa. Me disse que a única maneira de curar as bolhas e a dor seria mergulhar minhas mãos em água com sal grosso. Ingenuamente coloquei água em um balde, peguei um punhado de sal grosso e misturei à água. Em seguida pus minhas mãos na salmoura e as abri de uma vez. A onda de dor que se seguiu percorreu meu corpo até se alojar em meu rosto deixando-o, primeiro vermelho, depois branco.
Gritei de dor. Um grito visceral, um grito rouco. Depois olhando para o “homem das vacas” disse com os dentes cerrados “Isso dói!”. Ele riu às gargalhadas batendo com as mão calejadas em seus joelhos, jogou seu chapéu ao chão e bateu com os pés ao redor sem parar de gargalhar. Marcelo e Mara também gargalharam e diziam não acreditar que eu tivesse feito aquilo, diziam que eu deveria ser louco ou tolo demais. O fato é que após a dor intensa que me fez lacrimejar ficou apenas um ardor constante, latejante, nas bolhas arrebentadas. As lágrimas secaram e nem chegaram a escorrer.
Saímos com as ferramentas novamente para atacar as touceiras de narpiê e o “homem das vacas” nos acompanhou para verificar se o trabalho se justificava e se nós estávamos fazendo tudo certo. Chegamos a nossas touceiras e começamos a trabalhar. Os enxadões subiam e desciam com força dilacerando em sua descida a terra ao redor da base das touceiras. O “homem das vacas” sorriu e balançou a cabeça ao nos ver trabalhar. Disse que dessa forma machucaríamos a terra e nossas mãos. Aplicávamos a maior força na descida dos enxadões quando deveríamos aplicar força menor para evitar o impacto exagerado. Mostrou-nos como deveríamos fazer e nos fez praticar em terra mais macia próxima ao leito do córrego. Quando se satisfez com nosso desempenho sorriu como um mestre benevolente e se despediu deixando-nos trabalhar.
Exceto por algumas paradas minhas para fumar um cigarro enrolado na hora, trabalhamos sem parar até vermos o sol querendo tocar o horizonte. Juntamos nossas ferramentas e voltamos para a casa onde Mara trabalhava, já preparando o jantar. A luz oblíqua do sol inundava tudo ao nosso redor. A fumaça saindo pela chaminé descia para o chão e tornava-se prateada quando tocada pelos raios dourados do sol. O cansaço e a imagem da paisagem que se espalhava a nossa frente nos transportou a uma realidade paralela, quase de sonho.
Nos sentamos à porta da cozinha olhando o por do sol e começamos a limpar e afiar nossas ferramentas para o trabalho do dia seguinte. Quando terminamos fui me dedicar a alguns momentos de solidão treinando um pouco de karate para relaxar os músculos. Marcelo e Mara foram desfrutar de seu momento de solidão juntos. Cheguei à borda da floresta que havia atrás da casa e em um descampado ideal comecei meu treino à luz do sol poente.
Uma hora e meia depois eu voltava banhado em suor para a casa. Marcelo e Mara olhavam abraçados na porta da cozinha, o sol mergulhando no horizonte. Peguei uma muda de roupa, uma toalha e sabonete. Fui até o poço a uns dez metros da porta e, olhando também o crepúsculo, comecei meu banho de balde. A água estava muito fria apesar do calor do dia. Ao virar o primeiro balde sobre a cabeça senti as agulhadas percorrendo meu corpo. Minha respiração aumentando seu ritmo e os músculos se retesando mais uma vez. Banhei-me enquanto eles me olhavam como acompanhando um ritual. Na verdade eu me sentia realizando um ritual. A cada balde que derramava sobre minha cabeça sentia que a água levava as toxinas acumuladas em minha pele, as toxinas acumuladas em minha mente. Clareava meus pensamentos até deixa-los parados.
Concluído o banho me vesti e juntando-me a eles para admirar o mergulho final do sol no horizonte. O frio e os novos sons da natureza nos indicaram que era hora de entrar e nos prepararmos para jantar. Sentei-me à mesa da cozinha para ler. Mara brindou-me com uma deliciosa xícara de café. Marcelo se entregava ao planejamento dos trabalhos nos dias seguintes estabelecendo metas em função de nosso desempenho. Acendemos as lamparinas. Elas eram formadas por uma rolha circular com um pavio curto saindo de seu centro flutuando sobre óleo. Estrategicamente colocadas combinavam sua luminosidade com a da lenha queimando no fogão e nos aconchegavam na cozinha.
Pronto o jantar nos sentamos juntos à mesa e entre pratos e garfadas conversávamos animados pelo trabalho já realizado planejando o que faríamos a seguir. Marcelo indicava seus planos para os próximos dias. Mara detalhava os seus para podermos ajudar. Eu opinava e dava meus conselhos assumido tarefas com os dois. Terminamos de jantar e enquanto Mara e Marcelo lavavam a louça eu escrevia uma carta, como um diário, para Fátima. Ainda não sabia o que significava o que sentia por ela e essa empreitada parecia servir para consolidar se eu ficaria com ela ou não quando voltasse.
Depois de muito ler e escrever tomando o que restava de café fui deitar meu corpo cansado. Marcelo e Mara há muito já descansavam conversando entre eles e comigo através do teto sem forro. Deitei-me e senti o chão duro de encontro ao meu corpo, os músculos se relaxando. Continuamos a conversar deitados em quartos diferentes até que por completo adormeci.
Noite
Naquele dia, em que, em vez de virar à direita o fiz à esquerda, não encontrei ninguém que podia ou conhecia para conversar da vida ou de minhas tias e segui direto para a casa fria encontrando atrás da porta fina a carta de alguém que há muito não via e não tinha ao certo a lembrança de ter conhecido nessa pouca vida. A cada linha lida aumentava a certeza de não a ter conhecido. Aumentava também a certeza de que ela não me conhecia. Parecia uma carta aberta por engano, poderia ser para meu vizinho ou um estranho.
Surpreendia-me a distorção que o tempo e a distância trazem. Pessoas que conhecemos, com quem convivemos se tornam totalmente estranhas, tornam-nos mais estranhos ainda. Profundo sentimento de estranheza nos produz quando alguém nos descreve como não somos. Como não somos ou como achamos que não somos. O personagem que construímos para nós mesmos nem sempre coincide com o personagem que os outros observam a vagar pelas ruas vivendo. Criamos um personagem que não conhecemos e que adquire vida própria independente de nossa vontade ou intenção.
Os mitos são piores, pois os vemos muito além da humanidade. Mitos não defecam, não urinam e muito menos morrem. Nunca vi um mito comendo ou escovando os dentes após uma refeição. Presos em sua perfeição destroem a magia quando se apresentam como humanos ante os admiradores. Não há palavras, atos ou odores que desfaçam a imagem do mito. O mito é um perigo interno, alojado nas mentes mesmo daqueles que não os conhecem. Malditos símbolos jungianos que nos atormentam os sonhos que nem sequer chegamos perto de decifrar.
O cansaço da viagem da noite anterior ainda persistia em meu corpo. O sol ainda levaria algumas horas até se apresentar inundando a natureza ao redor. Saí do saco de dormir a um canto do cômodo que servia também de sala. Troquei-me rapidamente na escuridão. Ouvia o som dos utensílios na cozinha e a conversa baixa de Marcelo e Mara. Esfregando o rosto e me espreguiçando entrei na cozinha para o primeiro bom-dia em nossa pequena comunidade.
Mara prontamente pegou a chaleira grande e rumou para o estábulo de nosso vizinho onde pegaria o leite para o café da manhã. Tomei uma grande xícara de café enquanto conversava com Marcelo acertando o que faríamos naquele primeiro dia. Já despertos começamos então a executar a primeira tarefa do dia. Fomos até o poço, joguei o balde ao fundo e o puxei para cima pela corda cheio de água. Despejei a água em um balde que Marcelo segurava e joguei novamente o balde ao fundo do poço para puxar mais água. Enquanto isso Marcelo corria com seu balde para regar a primeira muda frutífera no recentemente plantado pomar.
Quando Mara chegou estávamos suados e na metade do trabalho de regar as mudas. Ela começou a preparar o café da manhã. Quando terminamos eu e Marcelo pegamos as ferramentas, enxadas, enxadões, foices e facões, os afiamos e partimos para nossa primeira tarefa no campo. Os primeiros raios solares iluminavam fracamente o céu, a névoa que cobria os vales começava a se dissipar. Essa claridade nos permitia observar o relevo local e traçar nossa estratégia de trabalho enquanto percorríamos o leito seco do córrego que cortava a propriedade.
Capim narpiê cobria várias partes do leito do córrego e, além de sugar a pouca água, formava barreiras que impediria o fluxo de água quando resolvêssemos o problema da represa feita pelo dono anterior da propriedade. Começamos a trabalhar em touceiras diferentes de capim, usando primeiro as foices para limpar o terreno e ter uma melhor noção de como fazer. A seguir ouvia-se nossa respiração pesada, o som do enxadão penetrando na terra e nossos abafados gritos de força. Assim destocamos as duas primeiras touceiras de capim narpiê e terminamos banhados em suor. As primeiras bolhas apareceram nas mãos.
Foi quando ouvimos um bater de panelas e o grito de Mara que nos chamava para o café da manhã. A mesa farta com variados alimentos macrobióticos, estranhos para mim. A luz do sol entrando pela janela aberta refletindo-se em tudo e o cheiro da lenha queimando no fogão a um canto criando uma atmosfera quase de sonho, irreal de tão real e diferente. Comemos inebriados com a luz e os sabores, a conversa animada, palavras cheias de expectativas.
Terminamos o café da manhã e deitamos por alguns minutos no chão frio da sala. Não chegamos a cochilar, apenas deitamos e relaxamos até o sono começar a querer nos invadir. Quando sentimos o peso do sono saltamos em pé e nos preparamos novamente para continuar nosso trabalho com o narpiê. Limpamos e afiamos nossas ferramentas e partimos para o córrego seco. Eram nove horas da manhã, estávamos em pé desde as quatro e trinta.
Trabalhamos duro por toda a manhã, o sol foi tomando uma posição cada vez mais vertical. As batidas cadenciadas, o suor em profusão, os músculos se contraindo e a touceiras caindo uma a uma e formando um desenho ordenado quando as amontoávamos para depois carregar até a composteira.
Às quatorze horas o som da batida na panela nos avisou que o almoço estava pronto. Nessa altura do dia estávamos como que hipnotizados pelo trabalho braçal constante. As enxadas subindo e descendo em um ritmo próprio, alheio a nossos corpos, a nossa vontade. Paramos e olhamos em direção à casa solitária no meio do campo. Suas paredes brancas refletiam a luz do sol de inverno acrescentando um estranho matiz. O suor colando nossas roupas a nossos corpos, as mãos doloridas, os músculos contraídos.
Juntamos nossas ferramentas e caminhamos satisfeitos e famintos rumo à casa. Mara nos aguardava com um delicioso e belo almoço macrobiótico. Senti falta da carne vermelha e dos carboidratos costumeiros. Por outro lado a beleza estética da comida realçada pela luminosidade de inverno e associada aos aromas que emanava estimularam meu apetite. Comemos inicialmente em silêncio, até percebermos o quanto estávamos famintos pelo primeiro dia de trabalho árduo. Rimos de nossa condição.
Após o almoço e um delicioso café moído na hora, me sentei no batente da porta da cozinha, enrolei um cigarro e entre uma tragada e outra observava minhas mãos e as bolhas que nelas se formavam deixando-as doloridas. Foi então que chegou nosso vizinho das vacas. Sorriu com seus dentes exageradamente brancos destacando-se em seu rosto escurecido pelo sol, pelo frio, pelo calor, pela sucessão de estações exposto ao clima implacável. Perguntou como iam “os meninos da cidade”. Riu ao ver minha expressão enquanto eu contemplava minhas mãos em bolha.
Minhas mãos não se abriam totalmente devido às bolhas e à dor. Pareciam as garras de um falcão em vôo, inúteis, incapazes de segurar qualquer coisa. Me disse que a única maneira de curar as bolhas e a dor seria mergulhar minhas mãos em água com sal grosso. Ingenuamente coloquei água em um balde, peguei um punhado de sal grosso e misturei à água. Em seguida pus minhas mãos na salmoura e as abri de uma vez. A onda de dor que se seguiu percorreu meu corpo até se alojar em meu rosto deixando-o, primeiro vermelho, depois branco.
Gritei de dor. Um grito visceral, um grito rouco. Depois olhando para o “homem das vacas” disse com os dentes cerrados “Isso dói!”. Ele riu às gargalhadas batendo com as mão calejadas em seus joelhos, jogou seu chapéu ao chão e bateu com os pés ao redor sem parar de gargalhar. Marcelo e Mara também gargalharam e diziam não acreditar que eu tivesse feito aquilo, diziam que eu deveria ser louco ou tolo demais. O fato é que após a dor intensa que me fez lacrimejar ficou apenas um ardor constante, latejante, nas bolhas arrebentadas. As lágrimas secaram e nem chegaram a escorrer.
Saímos com as ferramentas novamente para atacar as touceiras de narpiê e o “homem das vacas” nos acompanhou para verificar se o trabalho se justificava e se nós estávamos fazendo tudo certo. Chegamos a nossas touceiras e começamos a trabalhar. Os enxadões subiam e desciam com força dilacerando em sua descida a terra ao redor da base das touceiras. O “homem das vacas” sorriu e balançou a cabeça ao nos ver trabalhar. Disse que dessa forma machucaríamos a terra e nossas mãos. Aplicávamos a maior força na descida dos enxadões quando deveríamos aplicar força menor para evitar o impacto exagerado. Mostrou-nos como deveríamos fazer e nos fez praticar em terra mais macia próxima ao leito do córrego. Quando se satisfez com nosso desempenho sorriu como um mestre benevolente e se despediu deixando-nos trabalhar.
Exceto por algumas paradas minhas para fumar um cigarro enrolado na hora, trabalhamos sem parar até vermos o sol querendo tocar o horizonte. Juntamos nossas ferramentas e voltamos para a casa onde Mara trabalhava, já preparando o jantar. A luz oblíqua do sol inundava tudo ao nosso redor. A fumaça saindo pela chaminé descia para o chão e tornava-se prateada quando tocada pelos raios dourados do sol. O cansaço e a imagem da paisagem que se espalhava a nossa frente nos transportou a uma realidade paralela, quase de sonho.
Nos sentamos à porta da cozinha olhando o por do sol e começamos a limpar e afiar nossas ferramentas para o trabalho do dia seguinte. Quando terminamos fui me dedicar a alguns momentos de solidão treinando um pouco de karate para relaxar os músculos. Marcelo e Mara foram desfrutar de seu momento de solidão juntos. Cheguei à borda da floresta que havia atrás da casa e em um descampado ideal comecei meu treino à luz do sol poente.
Uma hora e meia depois eu voltava banhado em suor para a casa. Marcelo e Mara olhavam abraçados na porta da cozinha, o sol mergulhando no horizonte. Peguei uma muda de roupa, uma toalha e sabonete. Fui até o poço a uns dez metros da porta e, olhando também o crepúsculo, comecei meu banho de balde. A água estava muito fria apesar do calor do dia. Ao virar o primeiro balde sobre a cabeça senti as agulhadas percorrendo meu corpo. Minha respiração aumentando seu ritmo e os músculos se retesando mais uma vez. Banhei-me enquanto eles me olhavam como acompanhando um ritual. Na verdade eu me sentia realizando um ritual. A cada balde que derramava sobre minha cabeça sentia que a água levava as toxinas acumuladas em minha pele, as toxinas acumuladas em minha mente. Clareava meus pensamentos até deixa-los parados.
Concluído o banho me vesti e juntando-me a eles para admirar o mergulho final do sol no horizonte. O frio e os novos sons da natureza nos indicaram que era hora de entrar e nos prepararmos para jantar. Sentei-me à mesa da cozinha para ler. Mara brindou-me com uma deliciosa xícara de café. Marcelo se entregava ao planejamento dos trabalhos nos dias seguintes estabelecendo metas em função de nosso desempenho. Acendemos as lamparinas. Elas eram formadas por uma rolha circular com um pavio curto saindo de seu centro flutuando sobre óleo. Estrategicamente colocadas combinavam sua luminosidade com a da lenha queimando no fogão e nos aconchegavam na cozinha.
Pronto o jantar nos sentamos juntos à mesa e entre pratos e garfadas conversávamos animados pelo trabalho já realizado planejando o que faríamos a seguir. Marcelo indicava seus planos para os próximos dias. Mara detalhava os seus para podermos ajudar. Eu opinava e dava meus conselhos assumido tarefas com os dois. Terminamos de jantar e enquanto Mara e Marcelo lavavam a louça eu escrevia uma carta, como um diário, para Fátima. Ainda não sabia o que significava o que sentia por ela e essa empreitada parecia servir para consolidar se eu ficaria com ela ou não quando voltasse.
Depois de muito ler e escrever tomando o que restava de café fui deitar meu corpo cansado. Marcelo e Mara há muito já descansavam conversando entre eles e comigo através do teto sem forro. Deitei-me e senti o chão duro de encontro ao meu corpo, os músculos se relaxando. Continuamos a conversar deitados em quartos diferentes até que por completo adormeci.
Noite
Naquele dia, em que, em vez de virar à direita o fiz à esquerda, não encontrei ninguém que podia ou conhecia para conversar da vida ou de minhas tias e segui direto para a casa fria encontrando atrás da porta fina a carta de alguém que há muito não via e não tinha ao certo a lembrança de ter conhecido nessa pouca vida. A cada linha lida aumentava a certeza de não a ter conhecido. Aumentava também a certeza de que ela não me conhecia. Parecia uma carta aberta por engano, poderia ser para meu vizinho ou um estranho.
Surpreendia-me a distorção que o tempo e a distância trazem. Pessoas que conhecemos, com quem convivemos se tornam totalmente estranhas, tornam-nos mais estranhos ainda. Profundo sentimento de estranheza nos produz quando alguém nos descreve como não somos. Como não somos ou como achamos que não somos. O personagem que construímos para nós mesmos nem sempre coincide com o personagem que os outros observam a vagar pelas ruas vivendo. Criamos um personagem que não conhecemos e que adquire vida própria independente de nossa vontade ou intenção.
Os mitos são piores, pois os vemos muito além da humanidade. Mitos não defecam, não urinam e muito menos morrem. Nunca vi um mito comendo ou escovando os dentes após uma refeição. Presos em sua perfeição destroem a magia quando se apresentam como humanos ante os admiradores. Não há palavras, atos ou odores que desfaçam a imagem do mito. O mito é um perigo interno, alojado nas mentes mesmo daqueles que não os conhecem. Malditos símbolos jungianos que nos atormentam os sonhos que nem sequer chegamos perto de decifrar.


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