sexta-feira, maio 25, 2007

URBE -32

INVERNO

Os traçados da grande cidade fugiam a qualquer padrão pré-estabelecido amontoavam-se em perfeita desarmonia. Ordenação e desordenação se alternavam determinando o padrão espacial de urbanização. Ao sacrificar um animal a determinado deus ou entidade procurávamos manter um equilíbrio irreal. Oferecíamos sons aos espíritos latentes nos corpos para enaltecê-los. Encontrávamos a calma nas estrelas, ou em seu tempo, sua influência sobre nós.

Falávamos, julgávamos e olhávamos tudo o que acontecia sem participarcom um distanciamento indiferente. O tédio povoava nossas mentes. O guerrilheiro contava sua infância ao padre ajoelhado no confessionário murmurando. O esquema se repetia, soava a campainha e todos paravam e iam embora para casa. A chuva caia molhando o asfalto, os carros, as pessoas, suas mentes, suas almas atormentadas. Continuidade, descontinuidade, universos paralelos, descontinuidade paralela.

Após a música na escuridão, saí para a claridade do dia. Misturei-me aos sons da rua, procurando deles fugir. Pelas avenidas os cubos reservados ao lazer das crianças urbanas. O fundo e a lateral de dois prédios limitava a fronteira externa, horizontal, o viaduto impedia a penetração do azul do céu. Divertiam-se as crianças entre bêbados esfarrapados, trabalhadores descansando, cimento velho e estruturas metálicas enferrujadas didaticamente dispostas. A ferrugem a lhes cobrir as mãos, o pó preto impregnando-se em suas roupas, em suas carnes. Brincavam imaginando que aquele arbusto era uma floresta e os bancos as montanhas.

Saindo da avenida deixei seu ensurdecedor grito para trás. Ao entrar na pequena rua quase sem movimento, percebi cada parte do todo que constituía meu campo visual. Podendo divisá-las, detive-me demoradamente para poder compreendê-las. A vila mostrava suas casas rodeadas de árvores como não fazendo parte do universo da grande cidade que a cercava. O sol a se por e o calor proveniente do nada, a borracha dos pneus impedindo as trocas. Vislumbrei entre os prédios um pedaço de azul e umas nuvens e, circulando entre elas, um urubu, que solitário, cortava o céu em seu enigmático vôo.

Em harmonia desconexa o suor percorreu-me a face ao entrar no quarto. A ira tornou-se lucidez após a meditação, a energia canalizada. O dia chegou ao fim e minha dúvida aumentou. A brilhante autarquia demonstrou-me sua infinita sabedoria a cada ação praticada em nome do povo que se articulava, então, tentando obter alimentos. A água da banheira cheirou a podre, as plantas secavam e o solo não se tornou mais fértil, na manhã que sucedeu ao fato que não aconteceu.

Meus olhos tornaram-se mais excitáveis ante a imagem imprevista. A opressão dos prédios sobre meus ombros. A gulodice do trânsito que absorvia minha energia. Política, guerra e prioridades entre tantas outras, confundiam meus anseios naturais e reais. Criáramos artigos e leis destruindo tudo o que manipulávamos, transmitindo nossa crescente perturbação em todas as direções e deslocando um incompreensível equilíbrio que a natureza insistia em nos impor.