sexta-feira, novembro 24, 2006

URBE - 23


MARTE
Deslizei lentamente pelas ruas semidesertas da noite, perseguindo um pombo com o olhar, fitava sua cauda. Caminhava sem me lembrar direito de onde vinha, sabia que ia para casa, precisava chegar e dormir. Andando no silêncio da noite fui surpreendido por uma onda sonora repentina de alguém que gritava e dizia:

__ O caralhooooooooo!!!!! Eu te matoooooooo!!! Eeeeeu quebro tua cara!!!!

__ Bom aí eu disse: “Peraí ô malandro, eu num to aqui pra brigá!”

__ Foda-se!!!! O filho da puta tem casa, ele tem casaaaaaa!!!

__ Ele tem casa, por que o filho da puta não vai pra lá???

__ Ele tem roupa, comida, cigarroooo!!!

__ Filho da puta, eu matooooo!!!

__ AAAAAAAHHHHRRRRRRGGGGG!!!!

Da mesma forma que chegara o som de sua voz sumira quando o homem, com suas vestes rasgadas e encardidas, passou e continuou gesticulando e descarregando sua ira pelas ruas da cidade. À distância sabia que estava gritando, não o que. Bêbado, louco? Agora restavam somente os pinheiros em meio às cruzes do cemitério e um pássaro cortando o horizonte aqui e ali.

Aos poucos comecei a lembrar o que fizera antes de encontrar o bêbado ou louco a gritar. Estivera com Karen, acompanhei-a até a porta de seu prédio depois de passar algumas horas caminhando e conversando com ela. A garoa espessa caía lentamente. Beijei-a ternamente e caminhei sem olhar para trás. Tomei meu rumo. Pelo vidro do bar avistei uma cerveja que me chamava. Entrei e bebi solitário. Não tinha a mesma certeza de mim que tivera no começo do dia. Refiz a análise de meu ser impelido pelo álcool, paguei e sai cambaleante. Em um poste urinei, chutei algumas latas e molhei os pés.

Enquanto pensava cheguei a uma praça, acendi um cigarro e contemplei suas luzes, a cidade. Passei pela galeria aberta e contei os corpos que se amontoavam entre papelão e panos como fazia todas as noites que passava por ali. Loiras, morenas, mulatas, caucasianas e asiáticas prostitutas andavam lenta e sensualmente à beira do asfalto tornando-se evidentes, esperavam. Eram apetitosamente evidentes para mim. Como caçadoras, esperavam com sua paciência infinita. Eu olhava, temendo-as, adorando-as, desejando-as ardentemente.

Um tiro, não muito distante. Outro e outro mais, um grito. Luzes alucinantes passando junto à sirene mântrica, caso encerrado. Não importa adivinhar o que, coisas da cidade.

Tantas ruas que levavam a tantos lugares. Como saber qual escolher? A faixa verde entre meus olhos. Em minhas narinas penetrou a areia, meus dentes a morderam sem querer. Ardia o fogo atrás da fábrica, pelas chaminés a fumaça, operários na periferia. A graxa mantida em poças. O carro foi guinchado, seus ocupantes transportados. Meu olhar se perdeu na avenida. O esgoto engolindo meus sonhos a cada manhã. Preços altos, baixos, médios, oraculares. Tudo tem um preço, tudo tem uma verdade. Terei eu um preço e uma verdade?

Peguei o ônibus, antes o táxi, antes ainda o elevador, sistema de transporte integrado. Desci e a decepção frente à porta. Caminhei até a avenida, pedi carona. Camburão, ambulância, carros, motos. Parou o caminhão, pulei para dentro. O papo, dentes cariados, olhos tristes, nossos sorrisos forçados, temporários. Saltei ao chão em uma parada e agradeci pela carona e pela volta à realidade. Corri pela grama, desci um barranco firmando a mochila a minhas costas. Atravessei o prédio e vi por entre a mata que se abria após o concreto, o alaranjado, avermelhado, acinzentado, enegrecido e azulado entardecer da cidade. Ali parei e contemplei.

Continuando a caminhar no início da noite vi na avenida o vidro misturado ao coágulo pisado no asfalto. E essa louca gana pela grana que não me deixava nem ao menos sonhar ou dormir.

Voltaram a cair as folhas transparentes de meu jornal, minha sabedoria. Acompanhava-a por todos os lugares, não interferia, apenas observava, como um espectro, apenas observava. Sem saber ou compreender, nem mesmo tentar. Por ruas, avenidas, becos e escadas. E a boca a me dizer muito além dos olhos vazios dela. Escorreguei a cada passo no chão molhado procurando o ilusório equilíbrio que perdia ao passo seguinte. E aquela melancólica caminhada sob a chuva, a conversa vazia, a falta de conclusão. Ela não me queria, mas não me dizia e eu queria ouvir.

quinta-feira, novembro 16, 2006

URBE - 22

LUA

Minha face estava tensa, o coração acelerado, movimentos trêmulos. Deveria tomar uma decisão mais uma vez. Novamente falei ao telefone sem saber o que dizer. Após desligar percebi a que ponto o telefone era impessoal. Pus-me a meditar atrás da mesa. Olhei ao redor sentindo-me isolado no quarto. Abri a janela e minha percepção transportou-me ao mundo exterior. Aos poucos senti-me como uma gotícula deslizando pelo ar sem vento, quase parada. Era a própria garoa que cobria a cidade tornando-a mais cinza do que de costume, senti o vento suave a me carregar.

Desci, corri sem pensar. Pulei um muro sem soltar o bagulho. O suor a arder nos olhos, o gosto de sangue a invadir a boca. Mesmo assim, escalei a ponte rumo à avenida. Evitei atropelos e nervosismo. Chamei um táxi e fugi rapidamente.

Ao acordar senti na pele o calor do sol e este envolvendo o corpo. Caminhando entre árvores, postes talvez, não sabia ao certo parecia aos poucos me libertar da noite anterior. Tropecei em um buraco, escorreguei na lama. Não pude acreditar em tamanha solidão. Ter alguém para os momentos vazios, para aplacar a solidão. Entreguei-me a uma ridícula expressão de sentimentos que ofuscou a plenitude de minhas realizações individuais. Tornei-me um homem sentimental, opaco, infrutífero, manobrado. A sopa queimando na panela gasta, o leite fervendo e apagando o fogo, gás, uma faísca e a explosão.

Entrei no ônibus e espalhei minha carne por um banco. Enjoei-me a cada freada, odiei, inicialmente, o motorista, logo toda a civilização. Perda de tempo. Deitei-me fumaça, acordei água. Encheram-se os bares, conversas, danças, realidades encobertas pela música. Luz, maquiagem, roupas e gestos programados. Aperto de mão, tapas nas costas, sorriso automático. Acabaram-se as horas, nada mais existia, salas vazias, bitucas no chão.

A lâmina cortando dentro, não, o sangue escorrendo e a dor, a dor. Roscas apodrecendo nos mercados, suas prateleiras. O vidro impedindo a visão, o tato, o odor. Olhos arregalados, pele enegrecida pela fuligem, dura. O chão frio como cama, papelão o cobertor, o céu da cidade teto em esplendor.

sábado, novembro 11, 2006

URBE - 21


SEXTA-FEIRA

Um cigarro, por favor. Seu corpo inteiro estremecia. A distância não era suficiente para evitar sua visualização. O maço cuja cor, vermelha e branca, era identificável mesmo em meio à multidão. Seus dedos se enterravam em minha carne. O desespero estampado em seu rosto em forma de contorções grotescas. Sua respiração ofegante. Eu lhe estendi um cigarro destacado do maço. Pegou-o trêmulo, acendeu-o em meu isqueiro e deu uma tragada apagando-o em seguida com a palma da mão. Imediatamente após o contato com a fumaça seu corpo se acalmou, sua respiração então não mais ofegante, seus olhos me encaravam em silenciosa súplica.

Naquele instante o silêncio reinou e tudo se tornou mais claro. Os sons vindos da rua invadiam meu corpo. Minha mente mergulhava nesses sons que de tamanha quantidade pareciam viscoso líquido. Não fitava mais os corpos sem rosto, percebia seus perturbados espíritos observando seu olhar. Poderia ir além, poderia tentar enxergar através do véu de seus comportamentos. O sol pálido mostrado pelas nuvens apenas me aquecia. Há quanto tempo não ficava em silêncio a observar o entardecer? Qual meu referencial? Que ano? Quando?

A mente dos cinco sentidos parecia me trair, me enganava mostrando-me o que não era. Existiria algum sentido além desses cinco? Seriam somente cinco? Meu limite de percepção. Limite a vencer? O mundo era realmente aquilo que percebia e imaginava que seria? A mente dos sentidos teve que se contentar com pequenas divindades terrenas que eu criara com minha fé para explicar, para aceitar, a realidade da existência. E assim procurei acreditar em deuses, elfos e duendes.

No topo da montanha tudo era diferente. O vento trazia as notícias do vale. Os urubus hipnotizavam com sua dança mágica, seu vôo solitário. Parecia que estava longe dos homens por estar tão cercado pela natureza que se estendia a meus pés. Era um deus, era um fauno, era um elemental da natureza. O oxigênio queimava ao entrar em contato com meus pulmões. Uma viagem ao passado. O riacho cujas águas seriam violentadas quando se tornassem rio, lago mar me saciava a sede.