segunda-feira, julho 23, 2007

ESCORPIÃO

Ando em círculos de fogo. O calor é quase insuportável. Sei que ficará insuportável. Destilarei meu próprio veneno sob forma de palavras ao vento. Morrerei por minha vontade, no limite do suportável. Como saída à dor lancinante meu aguilhão letal. Não à morte inevitável, sim ao ato de morrer, como uma ação da vontade no momento que escolher.

segunda-feira, julho 09, 2007

URBE - 38

CENA PRIMEIRA

O vento frio e lento cadenciava meus passos de retorno me obrigando a acompanha-lo. Minha mente não se concentrava em nada. Já não tinha noção do espaço percorrido, nem do passado nem do tempo também. Poderia não estar ali. Os vagabundos deitados à porta do estacionamento fechado, amontoado de carne, papelão e lã como sempre. “Monte de lixo ou material em decomposição?” Me perguntava surpreso. Suas vidas.

Vi o carro, vidro quebrado, pára-lama amassado, esperança de melhora, parado no meio-fio. O japonês se aproximou e pediu minha ajuda. Chamou-me para socorrer a prostituta em apuros. Como faturar sem o carro? Noite perdida. Após o esforço muscular a decepção mecânica, não adiantara empurrar.

O japonês correu a buscar as ferramentas. Troquei olhares com a prostituta. O pedestre míope, lanterna na mão, surgiu como que do nada tornando-se evidente. Por que alguém andaria com uma lanterna pelas ruas iluminadas da cidade? “Algum problema?”, perguntara casualmente, já com a cara no motor. Deitou-se, o míope, dentro do carro tentando desvendar o mistério mecânico, querendo, evidentemente, sair vencedor. Ao vencedor a prostituta.

O motorista de táxi avistou, com seu abútreo olhar, o carro sendo reparado. Parou e juntou-se a nós. Apoiou o parecer do míope. O japonês voltou com as ferramentas à mão e seu amigo a reboque. Todos auxiliavam a prostituta para algum proveito tirar. Após hora e meia de graxa, parafusos e discussões mecânicas, alguém teve a estúpida idéia de sugerir que faltava combustível. A prostituta afirmou que era um absurdo sugerir isso, querendo não parecer tão imbecil. Balançaram o carro, introduziram uma mangueira e o tanque seco confirmou a idiotice de todos nós.

O motorista de táxi abriu um sorriso triunfante dizendo ter previsto tal desarranjo assim que vira o acidentado e concorrido carro. A prostituta encarou-o com uma silenciosa ira fulminante no olhar, como só uma mulher poderia encarar. Ela virou-se para mim e encontrou meu sorriso cúmplice.

O amigo do japonês convencera-se de que não teria que enfrentar uma cama fria naquela noite. Saiu à procura de seu carro. O táxi a álcool, para nada servia naquela situação. O míope saltava de um lado para o outro como se tivesse pleno controle da situação. Eu ficara estranhamente calado, tentando comunicar-me apenas com o olhar. Tentando entender essa estranha confluência de energia humana nessa rua da cidade. Qual seria o significado desse estranho encontro de pessoas?

Pausa para um cigarro, fumamos a prostituta, o japonês e eu. Ríamos da falta de gasolina, após todo o esforço para achar um defeito mecânico. Chegou, então, o amigo do japonês com seu carro.

O ritual. Tudo se passara como em câmera lenta. Introduziu-se a chave na tampa do tanque produzindo um movimento circular, sentido horário e anti-horário. Tirou-se a tampa, o míope introduziu a mangueira até o fundo iniciando a sucção. A prostituta insistia em uma história estranha e complexa de aulas e amigas, não se soube para quê.

A gasolina escorregara garganta abaixo e o míope já não se sentia tão herói. Após insistentes tentativas e instruções técnicas proferidas pelo motorista de táxi, o míope, vitorioso novamente, obteve o esperado fluxo do precioso líquido, fez-se a transfusão.

A prostituta procurou, excitada pela ocasião, com nervosismo calculado, seu dinheiro para uma retribuição. O amigo do japonês, numa última tentativa de sua cama preencher conquistando-a, recusou-se a aceitar a remuneração. A prostituta, apesar da noite perdida, sente o lucro numa momentânea segurança provocada pelo líquido que a levaria de volta para casa. Tendo perdido eventuais clientes, não teria que pagar a gasolina que a levaria de volta a seu lar.

Ela entrou no carro e de dentro despediu-se de todos, o motorista de táxi a imitara retirando-se também. Fora-se o míope com sua lanterna na mão e a cabeça cheia de idéias, falava sozinho sem parar. O japonês e o amigo olharam-se deslocados exaustos e derrotados, sem dúvida a noite para eles seria fria. Despedem-se ao mesmo tempo em que os outros e se vão pela avenida. Eu me retirara, vagarosamente, andando para trás, de costas, antes da separação. Observava o quadro a distância. Todos se foram, o vento frio carregava velhos jornais, as ruas estavam desertas, nada acontecera.

sábado, julho 07, 2007

URBE - 37

“...” O PASSADO

Todas as vezes que olhava para um quadro inúmeras vezes, nos tornávamos diferentes, eu e o quadro. Minha forma grosseira permanecia imutável, aparentemente, mas eu mudava e o quadro também. Vi no céu da cidade o cruzeiro do sul. O vento trazia as vozes e parte dos seres que emitiam os sons. O universo composto por ordem e desordem era para nós toda a codificação mental, consciente e inconsciente. Diferentes planos de observação, diferentes referenciais, nos levaram à concepção de diferentes universos, sendo infinitos e finitos ante a temporalidade refletida na realidade da consciência. Eram bem estranhos esses seres que me acompanhavam nas caminhadas diárias fazendo-me pensar e ver o universo de forma diferente.

Eu mergulhara na fonte do absurdo permanecendo em constante movimento sem nunca o ter percebido. Voltei à janela e indaguei um nome para noite, para as estrelas, para a cidade. Uma lata ao ser chutada, inconfundível som. Janela, luz penetrando e me acalmando. A tosse proveniente do buraco nas sombras. Reiniciar a respiração pausada. Uma pedra não fora colocada em seu lugar, nem mais poderia. Um grito, outro mais alto, agora longe, vozes a passar. O dia a clarear ou o entardecer? A pilha de jornal permanecia como se há muito estivesse naquela cabeça e ele avançava apesar do desgaste da calçada. Árvores novas ou velhas.

A tensão da espera inicial, depois a ação desenfreada. Conversa irreal, despersonificada, incertezas. Significado e verdade, ética. Redescobri a perda de rumo, acendi um cigarro e esperei. Seus olhos estavam distantes, sua voz próxima, quente. Sua pele plástica não transmitia calor. Tocou o telefone, mais informação. Quis envolver com os braços aquele corpo desconhecido, encontrei o ar. Controle neuro-hormonal. As botas encontraram o solo como querendo penetra-lo. Minha respiração acelerou-se com as batidas do coração, subida curta. As sombras concentraram-se em determinado, visível, ponto. Mais tarde se estenderiam rua abaixo, sala de espera. Não fazer, acontecer.