DESERTO

Ando em círculos de fogo. O calor é quase insuportável. Sei que ficará insuportável. Destilarei meu próprio veneno sob forma de palavras ao vento. Morrerei por minha vontade, no limite do suportável. Como saída à dor lancinante meu aguilhão letal. Não à morte inevitável, sim ao ato de morrer, como uma ação da vontade no momento que escolher.
O vento frio e lento cadenciava meus passos de retorno me obrigando a acompanha-lo. Minha mente não se concentrava
Vi o carro, vidro quebrado, pára-lama amassado, esperança de melhora, parado no meio-fio. O japonês se aproximou e pediu minha ajuda. Chamou-me para socorrer a prostituta
O japonês correu a buscar as ferramentas. Troquei olhares com a prostituta. O pedestre míope, lanterna na mão, surgiu como que do nada tornando-se evidente. Por que alguém andaria com uma lanterna pelas ruas iluminadas da cidade? “Algum problema?”, perguntara casualmente, já com a cara no motor. Deitou-se, o míope, dentro do carro tentando desvendar o mistério mecânico, querendo, evidentemente, sair vencedor. Ao vencedor a prostituta.
O motorista de táxi avistou, com seu abútreo olhar, o carro sendo reparado. Parou e juntou-se a nós. Apoiou o parecer do míope. O japonês voltou com as ferramentas à mão e seu amigo a reboque. Todos auxiliavam a prostituta para algum proveito tirar. Após hora e meia de graxa, parafusos e discussões mecânicas, alguém teve a estúpida idéia de sugerir que faltava combustível. A prostituta afirmou que era um absurdo sugerir isso, querendo não parecer tão imbecil. Balançaram o carro, introduziram uma mangueira e o tanque seco confirmou a idiotice de todos nós.
O motorista de táxi abriu um sorriso triunfante dizendo ter previsto tal desarranjo assim que vira o acidentado e concorrido carro. A prostituta encarou-o com uma silenciosa ira fulminante no olhar, como só uma mulher poderia encarar. Ela virou-se para mim e encontrou meu sorriso cúmplice.
O amigo do japonês convencera-se de que não teria que enfrentar uma cama fria naquela noite. Saiu à procura de seu carro. O táxi a álcool, para nada servia naquela situação. O míope saltava de um lado para o outro como se tivesse pleno controle da situação. Eu ficara estranhamente calado, tentando comunicar-me apenas com o olhar. Tentando entender essa estranha confluência de energia humana nessa rua da cidade. Qual seria o significado desse estranho encontro de pessoas?
Pausa para um cigarro, fumamos a prostituta, o japonês e eu. Ríamos da falta de gasolina, após todo o esforço para achar um defeito mecânico. Chegou, então, o amigo do japonês com seu carro.
O ritual. Tudo se passara como em câmera lenta. Introduziu-se a chave na tampa do tanque produzindo um movimento circular, sentido horário e anti-horário. Tirou-se a tampa, o míope introduziu a mangueira até o fundo iniciando a sucção. A prostituta insistia em uma história estranha e complexa de aulas e amigas, não se soube para quê.
A gasolina escorregara garganta abaixo e o míope já não se sentia tão herói. Após insistentes tentativas e instruções técnicas proferidas pelo motorista de táxi, o míope, vitorioso novamente, obteve o esperado fluxo do precioso líquido, fez-se a transfusão.
A prostituta procurou, excitada pela ocasião, com nervosismo calculado, seu dinheiro para uma retribuição. O amigo do japonês, numa última tentativa de sua cama preencher conquistando-a, recusou-se a aceitar a remuneração. A prostituta, apesar da noite perdida, sente o lucro numa momentânea segurança provocada pelo líquido que a levaria de volta para casa. Tendo perdido eventuais clientes, não teria que pagar a gasolina que a levaria de volta a seu lar.
Ela entrou no carro e de dentro despediu-se de todos, o motorista de táxi a imitara retirando-se também. Fora-se o míope com sua lanterna na mão e a cabeça cheia de idéias, falava sozinho sem parar. O japonês e o amigo olharam-se deslocados exaustos e derrotados, sem dúvida a noite para eles seria fria. Despedem-se ao mesmo tempo em que os outros e se vão pela avenida. Eu me retirara, vagarosamente, andando para trás, de costas, antes da separação. Observava o quadro a distância. Todos se foram, o vento frio carregava velhos jornais, as ruas estavam desertas, nada acontecera.