sexta-feira, fevereiro 29, 2008

DESERTO

Um calor lento envolvia tudo ao redor. Não havia sinal aparente de vento ou chuva. Poucas folhas se moviam com a brisa lenta. A quietude de um arco retesado, de uma arma engatilhada, de um grito contido. Ondas tremeluzentes de ar subiam do solo castigado por um sol indiferente. Rochas e uma vegetação sempre pronta a responder ao menor ataque ameaçavam minha integridade física. A cadeia de montanhas erguia-se no horizonte a minha frente como única alternativa de destino. Caminhada interminável ainda sem final.

domingo, fevereiro 10, 2008

SOMBRA

Caminho com uma sombra louca me acompanhando. Ela salta da calçada para a parede imunda num pestanejar. Às vezes mais lenta fica para trás, outras vezes abre meu caminho à frente. Ela não mente. Antevendo becos e poças d’água ela salta para um lado e para outro. Acompanha cada vacilo de meu espírito e se revolta quando o sol a consome em uma esquina descoberta.

quarta-feira, janeiro 30, 2008

MONOLITOS

Das entranhas da terra surgiram os monólitos improváveis. Misturando desejos e sonhos. Contrariando as vontades e impondo caminhos. Argamassa e metais fundidos em estruturas prontas a nos devorar. Triturando corações e mentes em cubículos sombrios. Canalizando fluxos intermináveis de multidões apavoradas. Eles nos cercam limitando os horizontes entorpecendo a visão. A vertigem que nos provocam garantem nossa embriaguez. Sem consciência não antevemos a queda. Apenas vamos em frente, dos cubículos para o fluxo para outros cubículos. Cegos correndo em disparada por um campo desconhecido, esperando atingir o abismo libertador.

sexta-feira, novembro 16, 2007

CHOVE NA CIDADE

Caminho pela cidade. As conversas no bar ainda ressoam em minha cabeça embriagada. Sinto com prazer o vento gelado e as gotas isoladas de uma chuva que não pára. Ao pisar na calçada brilhante escorrego e rapidamente vou ao chão. Controlo a queda, quase uma aterrisagem. A prostituta alta me ajuda com suas mãos suaves. Arruma minha gola e me beija o rosto dizendo que não foi nada. Sigo a caminhada rumo a uma luz que cintila solitária, chove na cidade.

domingo, outubro 14, 2007

CIDADE

Caminho para os bares e ela mais uma vez cresce em mim. Ela sempre me possui quando tento esquecê-la. Insinua-se lenta, quase sensual. Me atrai com suas luzes para a teia de possibilidades nos caminhos de suas ruas sinuosas. Sempre com uma novidade, sempre com o encontro inesperado de um desejo esquecido. Ela me toma e me enlouquece a cada passo. Eu corro para os bares para aplacar minha sede e bebo lentamente cada gota de seu sangue para perder-me novamente nessa Cidade.

segunda-feira, julho 23, 2007

ESCORPIÃO

Ando em círculos de fogo. O calor é quase insuportável. Sei que ficará insuportável. Destilarei meu próprio veneno sob forma de palavras ao vento. Morrerei por minha vontade, no limite do suportável. Como saída à dor lancinante meu aguilhão letal. Não à morte inevitável, sim ao ato de morrer, como uma ação da vontade no momento que escolher.

segunda-feira, julho 09, 2007

URBE - 38

CENA PRIMEIRA

O vento frio e lento cadenciava meus passos de retorno me obrigando a acompanha-lo. Minha mente não se concentrava em nada. Já não tinha noção do espaço percorrido, nem do passado nem do tempo também. Poderia não estar ali. Os vagabundos deitados à porta do estacionamento fechado, amontoado de carne, papelão e lã como sempre. “Monte de lixo ou material em decomposição?” Me perguntava surpreso. Suas vidas.

Vi o carro, vidro quebrado, pára-lama amassado, esperança de melhora, parado no meio-fio. O japonês se aproximou e pediu minha ajuda. Chamou-me para socorrer a prostituta em apuros. Como faturar sem o carro? Noite perdida. Após o esforço muscular a decepção mecânica, não adiantara empurrar.

O japonês correu a buscar as ferramentas. Troquei olhares com a prostituta. O pedestre míope, lanterna na mão, surgiu como que do nada tornando-se evidente. Por que alguém andaria com uma lanterna pelas ruas iluminadas da cidade? “Algum problema?”, perguntara casualmente, já com a cara no motor. Deitou-se, o míope, dentro do carro tentando desvendar o mistério mecânico, querendo, evidentemente, sair vencedor. Ao vencedor a prostituta.

O motorista de táxi avistou, com seu abútreo olhar, o carro sendo reparado. Parou e juntou-se a nós. Apoiou o parecer do míope. O japonês voltou com as ferramentas à mão e seu amigo a reboque. Todos auxiliavam a prostituta para algum proveito tirar. Após hora e meia de graxa, parafusos e discussões mecânicas, alguém teve a estúpida idéia de sugerir que faltava combustível. A prostituta afirmou que era um absurdo sugerir isso, querendo não parecer tão imbecil. Balançaram o carro, introduziram uma mangueira e o tanque seco confirmou a idiotice de todos nós.

O motorista de táxi abriu um sorriso triunfante dizendo ter previsto tal desarranjo assim que vira o acidentado e concorrido carro. A prostituta encarou-o com uma silenciosa ira fulminante no olhar, como só uma mulher poderia encarar. Ela virou-se para mim e encontrou meu sorriso cúmplice.

O amigo do japonês convencera-se de que não teria que enfrentar uma cama fria naquela noite. Saiu à procura de seu carro. O táxi a álcool, para nada servia naquela situação. O míope saltava de um lado para o outro como se tivesse pleno controle da situação. Eu ficara estranhamente calado, tentando comunicar-me apenas com o olhar. Tentando entender essa estranha confluência de energia humana nessa rua da cidade. Qual seria o significado desse estranho encontro de pessoas?

Pausa para um cigarro, fumamos a prostituta, o japonês e eu. Ríamos da falta de gasolina, após todo o esforço para achar um defeito mecânico. Chegou, então, o amigo do japonês com seu carro.

O ritual. Tudo se passara como em câmera lenta. Introduziu-se a chave na tampa do tanque produzindo um movimento circular, sentido horário e anti-horário. Tirou-se a tampa, o míope introduziu a mangueira até o fundo iniciando a sucção. A prostituta insistia em uma história estranha e complexa de aulas e amigas, não se soube para quê.

A gasolina escorregara garganta abaixo e o míope já não se sentia tão herói. Após insistentes tentativas e instruções técnicas proferidas pelo motorista de táxi, o míope, vitorioso novamente, obteve o esperado fluxo do precioso líquido, fez-se a transfusão.

A prostituta procurou, excitada pela ocasião, com nervosismo calculado, seu dinheiro para uma retribuição. O amigo do japonês, numa última tentativa de sua cama preencher conquistando-a, recusou-se a aceitar a remuneração. A prostituta, apesar da noite perdida, sente o lucro numa momentânea segurança provocada pelo líquido que a levaria de volta para casa. Tendo perdido eventuais clientes, não teria que pagar a gasolina que a levaria de volta a seu lar.

Ela entrou no carro e de dentro despediu-se de todos, o motorista de táxi a imitara retirando-se também. Fora-se o míope com sua lanterna na mão e a cabeça cheia de idéias, falava sozinho sem parar. O japonês e o amigo olharam-se deslocados exaustos e derrotados, sem dúvida a noite para eles seria fria. Despedem-se ao mesmo tempo em que os outros e se vão pela avenida. Eu me retirara, vagarosamente, andando para trás, de costas, antes da separação. Observava o quadro a distância. Todos se foram, o vento frio carregava velhos jornais, as ruas estavam desertas, nada acontecera.