ARCEBURGO - 5
– 14/07/85 – O leite, a vaca e o curral –
Dia
Há uma semana praticávamos o mesmo ritual já ajustados mecanicamente a nossas rotinas, cada um tinha suas tarefas individuais e em conjunto. O cansaço começava a nos rondar. Foi quando começamos a mudar nossas rotinas para tentar agüentar o tranco. Foi assim que assumi a tarefa de ir buscar o leite no curral. No primeiro dia tudo era novidade, mais uma novidade, na verdade muitas novidades. Nuca havia visto alguém tirar o leite de uma vaca.
Quando ouvi os primeiros sons das vacas sendo recolhidas do pasto noturno levantei-me e me troquei rapidamente. Fui até o poço lavei o rosto com sua água fria e enrolei meu primeiro cigarro. Entrei na cozinha e pus um resto de café para esquentar no fogão a lenha. Tomei o café contemplando as estrelas e fumando mais um cigarro. Começava a clarear no extremo leste, as estrelas ainda brilhavam a oeste. Era hora de sair para buscar o leite.
Caminhei na escuridão fria da manhã nascente rumo ao curral, passando as porteiras. As corujas me acompanhavam com o olhar eu ouvia o rufar de suas asas conforme me aproximava de seus ninhos. Em seguida gritavam excitadas procurando me afastar. Próximo ao curral pude sentir o cheiro de bosta e suor animal. Alguém falava alto “Vai idiota fica aí! Isso assim mesmo! Não se mexe! Vaca estúpida!”, era o “homem das vacas” já tirando o leite há algum tempo. Nos cumprimentamos, ele sem parar de tirar o leite, e começamos a conversar. Suas mãos hábeis tiravam jatos das tetas da vaca com uma velocidade incrível. O leite que chegava ao balde espumava e eu podia ver o vapor subindo.
Dei minha caneca metálica e ele a encheu de leite. Não que eu gostasse muito de leite, mas tinha que me alimentar, há uma semana, eu carnívoro convicto, só comia vegetais, quase não agüentava mais. Tinha crises de abstinência que me faziam comer limões-cravo como se fossem deliciosas frutas. Peguei a caneca de volta e senti o cheiro de leite materno subindo com a fumaça. Tomei um grande gole e senti o leite, ainda com o calor da vaca, descendo macio, reconheci o cheiro dos bezerros.
Em seguida, antes do segundo gole, um prolongado arroto me fez sentir o gosto do leite mais forte. Afastei-me um pouco para poder observar melhor o trabalho do “homem das vacas” e coloquei distraidamente atrás do animal. Conversávamos, ele tirava o leite da vaca e eu bebia em minha caneca, foi quando senti um líquido quente escorrendo por minha perna esquerda e molhando minha calça e minha bota. A vaca resolvera urinar naquele momento, aliviou sua bexiga em mim.
Gargalhadas a parte estava experimentando a dura vida saudável do homem do campo e todos seus odores. O cheiro de bosta misturado ao de urina das vacas, agora eu sabia a diferença entre eles, o cheiro às vezes insuportável de meu próprio suor acumulado nas roupas, todos odores naturais da vida saudável do campo. Olhei para o céu que clareava e senti saudades da vida intensa e poluída da grande cidade. Me despedi do “homem das vacas” e caminhei cheirando a mijo de vaca de volta para o sítio onde Mara e Marcelo me esperavam. Entre um peido com cheiro de bezerro e um arroto de regurgito de leite passei furioso pelas corujas e desta vez fui eu quem gritou enfurecido, elas saíram voando, eu me senti ridículo e gargalhei como um louco solitário carregando leite no meio do pasto. Cheguei ainda arrotando leite e fui ajudar o Marcelo que já regava as mudas. Repetimos o ritual diário. Tomamos café e saímos para o campo, a terra nos aguardava naquela manhã morna, mais um dia de trabalho.
Noite
O puro fato de meu medo de ficar só me levou a me ancorar a alguém. Isso fez com que a confusão gerasse mais confusão e esta uma constante insegurança para ambos. Diferente da insegurança encontrada na simplicidade de namoricar de pé ao pé da igreja à noite durante uma quermesse numa cidade quase do interior. O medo de ser surpreendido pelo padre, pelas tias da menina ou por seus irmãos e ter que assumir um compromisso formal.
A volta da incerteza de não me permitir experimentar, de deixar de conhecer a quem ainda falta e assim abafar os sonhos de outras noites. Esse eu, ego, centro do universo individual que não posso, ou quero, por medo, descartar em uma esquina após vomitar à saída de um bar e que me faz sentir maior importância que a que realmente tenho. Esse maldito ego que me torna arrogante quando sou acuado, que me deixa orgulhoso quando conquisto algo.
Por isso procurava incessantemente a totalidade do ser, para aniquilar os rompantes do ego maldito, para aplacar as oscilações violentas de minha mente que me desgastavam tanto e me afastavam de todos. Totalidade essa que parecia ser o único porto seguro na tempestade furiosa desse oceano etílico. A totalidade unificadora e uma que equilibrava o yin e o yang nessa balança louca que era meu ser. A totalidade, que por ser única me pareceu constante ou assim se tornou numa noite fria quando me faltava o calor de outro corpo ou de um cobertor elétrico comprado a prazo, ou, ainda, me faltava o calor que viria da alma vendida a prazo a um Mefistófeles urbano para obter o fogo que queima nas profundezas de um eu profano.
Dia
Há uma semana praticávamos o mesmo ritual já ajustados mecanicamente a nossas rotinas, cada um tinha suas tarefas individuais e em conjunto. O cansaço começava a nos rondar. Foi quando começamos a mudar nossas rotinas para tentar agüentar o tranco. Foi assim que assumi a tarefa de ir buscar o leite no curral. No primeiro dia tudo era novidade, mais uma novidade, na verdade muitas novidades. Nuca havia visto alguém tirar o leite de uma vaca.
Quando ouvi os primeiros sons das vacas sendo recolhidas do pasto noturno levantei-me e me troquei rapidamente. Fui até o poço lavei o rosto com sua água fria e enrolei meu primeiro cigarro. Entrei na cozinha e pus um resto de café para esquentar no fogão a lenha. Tomei o café contemplando as estrelas e fumando mais um cigarro. Começava a clarear no extremo leste, as estrelas ainda brilhavam a oeste. Era hora de sair para buscar o leite.
Caminhei na escuridão fria da manhã nascente rumo ao curral, passando as porteiras. As corujas me acompanhavam com o olhar eu ouvia o rufar de suas asas conforme me aproximava de seus ninhos. Em seguida gritavam excitadas procurando me afastar. Próximo ao curral pude sentir o cheiro de bosta e suor animal. Alguém falava alto “Vai idiota fica aí! Isso assim mesmo! Não se mexe! Vaca estúpida!”, era o “homem das vacas” já tirando o leite há algum tempo. Nos cumprimentamos, ele sem parar de tirar o leite, e começamos a conversar. Suas mãos hábeis tiravam jatos das tetas da vaca com uma velocidade incrível. O leite que chegava ao balde espumava e eu podia ver o vapor subindo.
Dei minha caneca metálica e ele a encheu de leite. Não que eu gostasse muito de leite, mas tinha que me alimentar, há uma semana, eu carnívoro convicto, só comia vegetais, quase não agüentava mais. Tinha crises de abstinência que me faziam comer limões-cravo como se fossem deliciosas frutas. Peguei a caneca de volta e senti o cheiro de leite materno subindo com a fumaça. Tomei um grande gole e senti o leite, ainda com o calor da vaca, descendo macio, reconheci o cheiro dos bezerros.
Em seguida, antes do segundo gole, um prolongado arroto me fez sentir o gosto do leite mais forte. Afastei-me um pouco para poder observar melhor o trabalho do “homem das vacas” e coloquei distraidamente atrás do animal. Conversávamos, ele tirava o leite da vaca e eu bebia em minha caneca, foi quando senti um líquido quente escorrendo por minha perna esquerda e molhando minha calça e minha bota. A vaca resolvera urinar naquele momento, aliviou sua bexiga em mim.
Gargalhadas a parte estava experimentando a dura vida saudável do homem do campo e todos seus odores. O cheiro de bosta misturado ao de urina das vacas, agora eu sabia a diferença entre eles, o cheiro às vezes insuportável de meu próprio suor acumulado nas roupas, todos odores naturais da vida saudável do campo. Olhei para o céu que clareava e senti saudades da vida intensa e poluída da grande cidade. Me despedi do “homem das vacas” e caminhei cheirando a mijo de vaca de volta para o sítio onde Mara e Marcelo me esperavam. Entre um peido com cheiro de bezerro e um arroto de regurgito de leite passei furioso pelas corujas e desta vez fui eu quem gritou enfurecido, elas saíram voando, eu me senti ridículo e gargalhei como um louco solitário carregando leite no meio do pasto. Cheguei ainda arrotando leite e fui ajudar o Marcelo que já regava as mudas. Repetimos o ritual diário. Tomamos café e saímos para o campo, a terra nos aguardava naquela manhã morna, mais um dia de trabalho.
Noite
O puro fato de meu medo de ficar só me levou a me ancorar a alguém. Isso fez com que a confusão gerasse mais confusão e esta uma constante insegurança para ambos. Diferente da insegurança encontrada na simplicidade de namoricar de pé ao pé da igreja à noite durante uma quermesse numa cidade quase do interior. O medo de ser surpreendido pelo padre, pelas tias da menina ou por seus irmãos e ter que assumir um compromisso formal.
A volta da incerteza de não me permitir experimentar, de deixar de conhecer a quem ainda falta e assim abafar os sonhos de outras noites. Esse eu, ego, centro do universo individual que não posso, ou quero, por medo, descartar em uma esquina após vomitar à saída de um bar e que me faz sentir maior importância que a que realmente tenho. Esse maldito ego que me torna arrogante quando sou acuado, que me deixa orgulhoso quando conquisto algo.
Por isso procurava incessantemente a totalidade do ser, para aniquilar os rompantes do ego maldito, para aplacar as oscilações violentas de minha mente que me desgastavam tanto e me afastavam de todos. Totalidade essa que parecia ser o único porto seguro na tempestade furiosa desse oceano etílico. A totalidade unificadora e uma que equilibrava o yin e o yang nessa balança louca que era meu ser. A totalidade, que por ser única me pareceu constante ou assim se tornou numa noite fria quando me faltava o calor de outro corpo ou de um cobertor elétrico comprado a prazo, ou, ainda, me faltava o calor que viria da alma vendida a prazo a um Mefistófeles urbano para obter o fogo que queima nas profundezas de um eu profano.


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