sábado, janeiro 07, 2006

ARCEBURGO - 6

– 17/07/85 –

Dia


Apesar da rotina árdua de trabalho diário continuávamos sem desanimar. As descobertas diárias nos fascinavam e nos impulsionava a seguir em frente. Quando nos afastávamos do córrego parávamos a certa distância para poder ver o resultado. A paisagem se alterava significativamente. A retirada das touceiras altas de capim revelavam uma árvore florida, um arbusto ou uma rocha exposta afastando o abandono anterior. Poderíamos dizer que a terra agora tinha dono e ele a trabalhava.

Eu sentia cada vez mais fortes os sintomas da abstinência de carne de todo tipo. Continuava a comer limões cravo para aplacar minhas crises de abstinência. E comia-os como se fossem deliciosa fruta.

Todos os dias, após o trabalho ou em alguns intervalos procurávamos lenha para o fogão, nossa energia motriz. Nesse dia em especial além dos efeitos da abstinência de carne senti os efeitos, hormonais provavelmente, da abstinência sexual. Estava a mil. Caminhei até a clareira onde fazia meus exercícios do dia chutando gravetos nos chão. Estava difícil encontrar mais lenha. Parecia que havíamos consumido toda a lenha disponível do lugar. Claro que ainda não havíamos explorado a floresta.

Após os exercícios, vários katas e chutes para o ar acompanhados de gritos, resolvi caminhar um pouco pela floresta para meditar, o desejo sexual estava me matando. Segui por uma trilha batida que não conhecia. Contornei a vertente que drenava para a parte alta do córrego em que trabalhávamos e avistei entre as árvores e arbustos outra clareira. Esta mais escondida no interior da floresta do que aquela em que treinava karate. Havia um afloramento rochoso que ondulava o terreno dificultando o acesso e por trás dele encontrei uma pequena área plana. No lado oposto ao afloramento rochoso havia uma árvore caída. Uma árvore inteirinha, toda ela, caída e ressecada pelo tempo. Se aquilo não era lenha outra coisa não seria. Peguei alguns galhos e fiz uma pequena fogueira para testar seu poder de fogo, queimou maravilhosamente.

Excitado parei em frente à árvore caída, me concentrei, respirei fundo, olhei em toda sua extensão e soltando o primeiro grito acompanhei com um chute certeiro em um ramo lateral. Fragmentos de seus ramos e galhos voaram em todas as direções. Meus braços não paravam, seguindo os chutes cortavam os galhos. Utilizei todos os golpes que conhecia naquela árvore caída e ressecada. Moldei seus restos mortais de forma a preservar um dos ramos principais que me serviria para carregar os galhos partidos. Aproximadamente quarenta minutos depois estava com uma pilha de lenha encima de uma carroça primitiva sem rodas. Caminhei arrastando a pilha de lenha por outra trilha mais plana, levei trinta minutos para chegar à casa. Marcelo e Mara riram quando me viram chegando. Não acreditavam na grande quantidade de lenha que eu trouxera. Sentei-me para fumar um cigarro e eles perguntaram, rindo e olhando para a pilha de lenha, se eu estava melhor em relação a minha fúria ou furor sexual. Respondi que tudo estava bem e começamos a amontoar a lenha em um canto próximo à cozinha. O dia estava no fim e quando fui me banhar com o balde do poço contemplei a fumaça das queimadas que acariciava os vales da paisagem.

Noite

Certa noite ao entrar em uma conhecida casa desconhecida e ser recebido por conhecida pessoa desconhecida, conheci um amargurado. Ao ver sua amada em braços alheios, ficou a contempla-la sem sair da conhecida casa desconhecida, torturou-se ante a impotência de deseja-la, mas não ter coragem para possuí-la. E torturou-se por adquirir a maldita doença de possuir, a obsessão de escravizar aquilo que o tornava significativo ante um código de normas. Ainda, significativo para si, eu como somatória de estímulos armazenados em alguma parte dentro de uma mente cansada pela repetição de atos. Cansada daquilo que percebe e conhece como universo da consciência de ser.

Tendo-se retirado a conhecida pessoa desconhecida, procurei o outro espírito atormentado pela ânsia da confirmação. E entre as conhecidas pessoas desconhecidas vislumbrei-a a um canto, copo perdido na mão, sorriso sensual, vestido colado ao corpo. Imagem fugaz, rapidamente se apagou na multidão da festa, perdi-a de vista.

Alerta, mas não desesperado, vasculhei a conhecida casa desconhecida e em plena pista avistei-a a deslizar em uma dança sensual, em companhia de um desconhecido barbudo, terno bege, calça marrom. Após tal visão, não soube ao certo, lembrava-me de ter chegado ao que parecia o centro de pulsação alcoólica da festa, o imenso bar. Ingeridas algumas doses, porém, reconsiderando e analisando o fato, não o encontrei anormal, uma vez que me atrasara e sabia do gosto que ela tinha pela arte de dançar.

Retomei a procura e deparei-me com o amargurado agora atormentado que, em plena bebedeira, voltara a se entregar ao sofrimento solitário a que nos entregamos quando sentimos que não mais somos amados por aquela pessoa alvo de nosso amor. Encontrava-me em meio ao mais obscuro dos níveis do eu, em meio à crescente euforia reinante na festa. Tudo parecia não mais fazer sentido, embora fosse aquele o universo ao qual pertencia sem compreende-lo, num instante localizado entre um segundo e outro. Tentei convencer-me de que quanto maior o apego, maior seria o tormento, tirando-me assim a visão completa do universo e lançando-me a um plano único e radial que era o ego em toda sua plenitude.

Deixando a um lado as considerações dialéticas dei vazão ao mais animal de meu ser e parti em busca dela. Não sabia porque, mas procurava nos cômodos menos agitados, mais distantes da balbúrida da festa. A cada cômodo revistado com o olhar, a cada partícula absorvida por minha retina, aumentava a ansiedade e a tensão interna, que poderia ser comparada à de uma caldeira prestes a explodir.

Entrando em um corredor de diversas portas me detive diante de uma e apenas uma única e individual porta. Sem saber porque escolhera aquela e não outra. Não notara sequer que parara diante da porta como quem adia a colheita do fruto maduro. Detido pela perplexidade de encontrar o fruto há tanto procurado e não saber o que queria. Abri-a após um tempo alheio aos cronômetros. Não esperava, ou não sabia o que, encontrar que pudesse perturbar a superfície de meu ego. Vi a cama e nela ela entregue às carícias do barbudo agora sem terno bege e calça marrom.

Lembrara-me do riso que vibrara em minha mente ao vê-los dançar pensando que poderia sê-lo por puro gosto de dançar. Não poderia admiti-lo. Sem emitir som algum retirei-me em profunda agonia tentando compreender não o porque de minha amada estar em braços que não os meus, mas a agonia e sua origem em si. Como poderia estar sentindo tamanha desorientação e fragilidade sendo capaz de me pôr a chorar pelo simples fato de me sentir só e admitir-me, assim, excluído de todo e qualquer relacionamento que tivera até então?

À saída encontrei o amargurado atormentado em plena queda diante da pressão à qual era submetido seu peito ante a visão da língua da amada a tocar a língua daqueles braços que a envolviam agora e que não eram os seus. Passei por eles como passa o vento pelas ruas desertas nas madrugadas silenciosas, deixando apenas parte de meu alento. Ganhei a rua e deixei que a brisa da noite me cobrisse assim como a escuridão brilhante da cidade grande. Perdi minha identidade em meio à multidão, nem tudo estava perdido, poderia pegar a sessão da meia-noite e assistir àquele filme que há muito não via.