sábado, dezembro 16, 2006

URBE - 24

MERCÚRIO
Lembro-me de como ele era, a cicatriz cortava-lhe a cara em perfeita diagonal, nem tão perfeita assim, seu rosto sem expressão. A sujeira penetrara tanto em sua pele que se confundia com qualquer parede suja de um beco qualquer perdido em algum lugar da seqüência de cidades que eram uma só. A cabeleira negra com revolutas mechas se armava em sua cabeça parecendo um apêndice importante de seu corpo, dando-lhe uma estabilidade perceptível. As sobrancelhas rebeldes apresentavam fios em diversas direções, apontando tudo, acusando a todos como um dedo em riste de alguém que direciona sua ira a outro alguém. As rugas acumulavam fuligem pintando-lhe uma máscara peculiar semelhante a uma tatuagem tribal dos Maoris. Seus olhos pareciam contemplar o infinito muito além da matéria. Ainda me pergunto o que veria.

Lembro-me também daquelas belas prostitutas. A primeira vez que as vira eram túrgidas, carnosas como fruto no ponto, tentadoras. A plástica maquiagem suave em suas carnes sensuais convidavam ao prazer, aos sonhos carnais, aos sonhos sensuais. As curvas de seus corpos e a rigidez das carnes revelavam sua juventude. Desfilavam seus seios, suas pernas e seus ombros em roupas claras e leves sobre a pele alva, inebriantemente belas, acentuando o contraste urbano impostos pelas ruas escuras cheias de prédios com paredes agressivas e impessoais. E desfilavam sempre em meio às sombras da noite, nunca à luz do sol. Poucos anos de frio, calor, vento e chuva. Hoje secaram. Negras vestes cobrem as rugas, seus corpos deformados, longos cabelos sintéticos e pesada maquiagem os rostos. Certa noite desapareceram. Aonde teriam ido as adoráveis prostitutas que contemplava nas noites solitárias que me arrastava para casa cansado? Por onde andarão?

Misturou-se ao amargo de bile o tabaco e o álcool, sua cara inchada. O vômito seco pendente próximo ao bolso direito dianteiro, da calça. A saliva a escorrer pela boca, olhos embaçados. Arrastava a perna esquerda, balançava o braço esquerdo, pendente, jogava o corpo para trás, o quadril para a frente. Recolheu do lixo amontoado duas caixas de papelão, com uma forrou o chão a outra cobriu-lhe o corpo. O vento uivava nas colunas do prédio vazio e ele dormiu. Não sei se sonhou.

Copo ante copo, a mesa coberta de garrafas. Veio o moleque puxou minhas calças em súplica, pediu uns trocados. Em seguida o velho bêbado, roupas deterioradas, um cigarro. Saiu tropeçando em coisas que não existiam. A conta foi saldada, vieram os beijos, abraços. O táxi, hotel, cama e sexo. Amanhecer vazio, sem futuro ou presente, só o passado, um passado comum. Quantos passados comuns mais teria que suportar?

Bati a última lauda apressado, o coração a bater acelerado. Ouvi meu chefe a praguejar em outra sala, amaldiçoando-me pela centésima vez. Não agüentava mais, odiava-o. Bati o cartão de ponto, assinei o livro, entreguei o crachá ao segurança. Olhei para meu relógio de pulso, odiava relógios de pulso, previ de quanto meu atraso. Corri para o ponto, num último esforço arremessei-me para dentro do ônibus que já partia. Tentei normalizar a respiração, suor a me banhar o corpo. De pé, uma mão sustentando o corpo a outra o texto, os olhos a percorrer tudo. Senti uma forte pressão no peito, desci, corri rumo à sala de aula na infinita noite que era uma, que eram mil.