domingo, setembro 17, 2006

URBE - 14


Ela

Ela esperava sustentando seu corpo esguio e sensual em suas sandálias de salto alto. Seu esperar nervoso, cheio de trejeitos e impaciente. Seu corpo tremulava suavemente e eu a observava a distância antes de me aproximar para encontra-la. Lentes verdes muito escuras a lhe cobrir os olhos para não serem castanhos claros. Ela me falava se escondendo por trás de gestos precisos calculados, quase teatrais em deliciosa coreografia. No entanto aflorava, em suas palavras, a insegurança de quem porta um segredo imoral, a inquietação de quem se sente culpado e que se confessar. O espírito em conflito, no entanto não se refletia em seu corpo, em suas atitudes, parecia ser normal. A incerteza de estar ou não estar, de ser ou não ser, a procura de uma espécie de catarse psicológica, falta de ação.

Eu confundira meus sentimentos ao encontra-la, senti uma enorme atração queria seus braços nos meus, mas ela apenas precisava de minha presença como confessor. Ela dizia muitas palavras em acelerado discurso e o enigma do encontro não se desvendava. Não sabia o que queria falar comigo, na verdade não conseguia dizer diretamente o que queria, parecia que as palavras encontravam-se presas em sua garganta seca formando um nó. Pensei que faze-la andar seria um bom estímulo, o cérebro se distrairia com os passos e a mudança da paisagem faria os pensamentos fluírem assim como as palavras.

Aos poucos, a cada passo dado pela calçada irregular desviando de buracos, raízes e frestas, ela começou a falar. Os prédios e as pessoas ao redor diluíram seu pesar. Me perguntava insistentemente “Por que teria que ser especificamente comigo? Por que não com outra pessoa mais íntima?”. Percebi que talvez somente eu seria capaz de provocar-lhe a catarse que ela precisava justamente por não ser tão íntimo. Eu, sem saber como, lhe forneceria a força geradora que ela necessitava para ir em frente e a levaria à ação.

Compreendi o sentimento comum que apenas muda de referencial. Cheguei a beijá-la não por compaixão ou paixão, apenas por aproximação humana, ela se entregou docilmente a meus lábios. Envolvi-a em meus braços transmitindo meu calor, escorei-a enquanto ela precisou, em silêncio, afetuosamente. Senti seu calor me invadir e me entreguei completamente. Seus olhos pediam clemência por seus atos, por seus erros, me faziam, dessa forma, seu júri, seu juiz, seu defensor. Seus lábios tentadores me faziam delirar, eram a porta de entrada que me prometia um novo universo.

O desespero pela incerteza da vida, a angústia de ter errado na escolha de seus passos até ali, a mentira que ela mesma se impusera acreditando ser verdadeira. Tudo se acumulava em um só sentimento que a confundia e a enchia de insegurança. Seu perfume espalhava-se ao meu redor convidando-me a ficar, a entrar em sua vida, a pertencer-lhe para todo o sempre.

Senti-me leve, sendo carregado para um mundo sem igual em seus doces braços, não queria deixar de toca-la. Nesse estado de entrega ajudei-a sem pestanejar, entreguei-me incondicionalmente, apaixonadamente. Sem esperar recompensa, mas esperando com ela ficar. Servia-a sem questionar. Nossos passos lado a lado pela cidade. Estava completamente entregue e acreditava que isso era o amor.

Certa tarde, quando andávamos pelas ruas da cidade sem fazer nada especial, vi um redemoinho de vento carregando papéis pela calçada. Naquele instante reconheci o sinal, era um augúrio. Percebi que estava em outro lugar diferente do que gostaria de estar, parecia que estivera sonhando, senti que acordava naquele momento como se o efeito de uma anestesia geral cessasse por completo. Ela estava a meu lado, dona da situação, acreditando que andava em terreno seguro. Vi as correntes do relacionamento muito próximas a envolver-me totalmente, começando a me sufocar. Minha energia esvaía-se entre os grilhões.

Não agüentava mais, dei um telefonema, depois o trem para algum lugar. Lembrei-me, então, de seu olhar parada na estação, quando eu saltei para o vagão sem explicar, o último olhar. Sem despedidas, ação rápida já cumprida, estava liberto para continuar minha vida. Guardaria sua lembrança em meu coração. A velocidade dos acontecimentos ao seu lado durante os três dias passados fizeram-me devanear para depois reencontrar meu caminho, apesar da tentação. A desordem natural do inevitável destino traçado por meu próprio karma.