quinta-feira, julho 13, 2006

URBE - 8

Herança

Ao ver sua luz refletida nas nuvens vagarosas percebi a energia que delas emanava. Vi homens e mulheres que doavam seus filhos ao interminável fluxo energético que para as cidades convergia. Suas vidas perdiam sentido ante as expectativas. Seus sonhos eram um emaranhado de necessidades artificialmente criadas por uma mídia acéfala e desorientada. Necessidades impostas por um sistema condicionante auto-sustentável e auto-organizado, direcionado por um inconsciente coletivo. Necessidades que criavam novas necessidades levando os pais a repetirem ideais por gerações sem fim para justificar seus atos. Ideais equilibrados e de bom senso ditando as opiniões e a moral. E eu me perguntava: “Então por quê as coisas não dão certo? Por quê nos encontramos em tal condição de desorientação, insegurança e problemas sociais?”.

As mães entregando seus filhos por uns trocados na velhice a um sistema semelhante à tão combatida escravidão. Elas se diziam portadoras da verdade universal apresentando-se como a base da sociedade atual. Transmitiam a seus filhos a mentira de um mundo igualitário onde cada um deveria saber qual seu papel. Mundo perfeito, límpido, linear, irreal. Democracia politicamente correta, corrosivamente mentirosa e imoral distorcendo o convívio social. Muitas mães trabalhavam e desenvolviam novas capacidades adquiridas após uma pseudolibertação. Outras cobriam suas cabeças com lenços e circulavam por uma praça perdida no hemisfério sul, reclamando a vida de seus filhos desaparecidos ou mortos.

Os pais proferiam palestras de homens bem sucedidos, justificando cada um de seus atos maduros e civilizados. Aconselhavam os jovens e discorriam emocionalmente a respeito das dificuldades de ascensão em seu tempo, reclamando das facilidades atuais. Conflito de gerações artificial. Traçavam, em palavras mágicas, quais os melhores caminhos que a humanidade deveria tomar, levando em consideração o desenvolvimento econômico e o sucesso profissional. E no papel tudo ficava harmonioso, e quanto papel.

Uma seqüência de filhos que seriam pais encadeando um interminável fluxo de consumidores, mão-de-obra potencial. E assim consolidava-se a supremacia de seres fracos incapazes de realizar o intangível, incapazes de imaginar além de suas vísceras. A mediocridade imperava nas torres do poder transmitindo o modelo para todos. Não havia espaço para os pobres e desajustados radicais, não havia espaço para o livre pensar.

Não surgiam sábios, apenas faladores profissionais construídos pela mídia estabelecida, com imagens equilibradas, suaves e belas. Perfeitos em seu vocabulário concordante, poetas até. Esses filhos que seriam pais, desamparados em sua loucura normal. Cegos à sua condição, caminhavam nas direções indicadas sem questionar. Incapazes de fazer seu próprio caminho, indiferentes a sua castração intelectual, desapropriados de si. Apenas procuravam ser felizes, não queriam saber os porquês.

A individualidade rendia-se à moda, estatisticamente a média de maior freqüência em um universo amostral, impedindo o estilo pessoal. Sempre eram comparados a determinado ator ou atriz em determinado filme, que eram obrigados a assistir e imitar. A realidade de suas vidas camuflada por contas a pagar, roupas, carros e novidades tecnológicas a comprar. Tudo em nome da santa estabilidade da produção industrial e da milagrosa sustentabilidade do fluxo cambial.