ARCEBURGO - 18
– 01/08/85 –
Dia
Após a bebedeira da noite acordamos cedo, porém mais tarde que o normal. O sol já tocava tudo com seu brilho suave de inverno. Fui buscar o leite e me detive em casa de um vizinho que me convidara a tomar um café. Conversamos como compadres, como se o fizéssemos há muito. Foi uma conversa suave de colheitas e clima, enquanto as galinhas ciscavam ao redor. A fumaça do fogão a lenha subia lenta e seu aroma se espalhava como incenso em um templo perdido no tempo.
Fim da conversa caminhei pelo pasto quente. Os lagartos se escondendo a minha passagem, as corujas gritando mais uma vez enquanto voavam ao meu redor me escoltando até sair de sua área de vida. Cheguei à casa e encontrei Matheus e Mara arrumando e limpando tudo. O pai de Mara arrumava suas coisas para partir. Ajudei na limpeza até a hora em que levariam o pai de Mara para a cidade, onde pegaria o ônibus que o levaria de volta a São Paulo.
Levaram-no antes do almoço. Mais uma vez fiquei só no sítio entregue a novas tarefas. Repetia mecanicamente o ritual de limpar touceiras de narpiê onde fosse necessário, Marcelo já me instruíra a respeito antes de ir à cidade. Trabalhava duro, ritmicamente, para a intervalos longos, enrolava um cigarro e o fumava com prazer antes de retomar o trabalho. A lâmina afiada do enxadão cintilava sob os raios do sol da tarde quando ouvi a perua chegando de volta da cidade.
Marcelo se trocou e veio me acompanhar no trabalho. Terminamos antes do habitual. Era a última tarefa a que nos havíamos proposto. Andamos pela propriedade avaliando o que fizéramos e projetando o que faríamos em outra oportunidade. Nossa temporada de trabalho no campo chegara ao fim. Os fardos de capim envolvendo a composteira, a fumaça saindo pela chaminé da casa, a água escorrendo pela mangueira, coisas inexistentes antes de nossa chegada nos davam enorme satisfação do trabalho realizado. Caminhamos lentamente acariciando tudo com os olhos, guardando cada detalhe como se nunca mais fossemos voltar, como se fosse nosso último dia na terra. Uma melancolia eufórica nos inundava. A cada respiração parecia que os dourados raios do sol de inverno nos invadiam o peito enchendo-nos de luz.
Terminamos a vistoria, fui para meu banho ritual, nessa noite prepararíamos o que faltava para a viagem de retorno.
Noite
À meia luz via fumaça subindo lentamente em espirais quase horizontais. Nem a penumbra nem a fumaça aliviavam minha raiva. Caíra em minha própria armadilha, deixara me levar, mais uma vez, pela lei dos homens. Reagi como alguém normal ante a impossibilidade de fazer. Pensamentos de aniquilação em massa passaram por minha mente ainda doentia.
Senti a energia enorme saindo do baixo ventre percorrendo cada milímetro pelo centro do corpo ativando canais, iluminando-os, excitando-os. Quando chegou a minha cabeça senti cada polegada de meu crânio vibrando ante a potência dessa energia. Ela explodiu em uma ira além dos limites humanos da demência, da loucura ou da administração pública. Pensei em cada homem público que se esbaldava na matéria às custas do horror e do sofrimento humano de seus pares em todas as nações. Discutiam em jantares nababescos exacerbando seu sibaritismo. Suas taras encobertas por uma camada fina de polidez e correção nojentas.
Discurso politicamente correto de intelectualóides de merda encontravam-se cegos ao horror que criavam. Seus descendentes colheriam os frutos podres da desolação planetária em meio a guerras estúpidas e carnavais carnais e idiotizantes.
Não importava, minha fúria era pura além dessas mentes medíocres que se contentavam com pouco. Eu queria o horror pelo horror. A morte de milhões de seres humanos sem o menor aviso, sentido ou reivindicação política ou resgate milionário. Deixei a fúria subir e atingir seu grau máximo até o primeiro encontro com algo mais humano.
Então olhei para aquele ser que se me assemelhava olhando atônito, sem compreender o que me acontecia. Percebi que tentava colocar um pouco de lógica em meus impulsos, mas tudo sucumbiu ante o olhar daquele que eu amava. Me desloquei mais um pouco e encontrei outro ser a quem também amava e a energia que se voltava pára a destruição sem sentido da humanidade sem rosto se converteu lentamente em uma força que levava em outra definitiva direção.
Desconhecida direção para mundos paralelos onde a perspectiva era outra. Onde a mediocridade era um reflexo do medo dos grandes egos que se deslocavam pelo planeta. Não cheguei a sentir pena ou compaixão por essas pobres entidades ocas e desorientadas. Um iluminado já dissera há muito que eles não sabiam o que faziam. Eu agradeci pela possibilidade de saltar sobre o abismo de minha mente e controlar minha loucura convertendo-a em normalidade aparente. Eu era um guerreiro, só me restava a batalha diária contra o maior dos inimigos. Um inimigo implacável que apenas espreitava um momento de fraqueza para me dominar completamente. Meu ego em todas suas manifestações sedutoras. Prometendo-me poder, fama, grana e reconhecimento.
Nesse instante de insanidade temporária senti que algo se quebrara em mim. A dissociação fora sutil, mas forte o suficiente para senti-la mesmo sem me concentrar profundamente. Era algo real que me impulsionava de dentro para fora e de fora para dentro, transformando minha percepção e me acalmando. Minha mente se rendeu à neutralização das flutuações mentais até atingir o equilíbrio da superfície de um lago imperturbável. Naquele momento senti que uma nova energia e uma velha condição voltava a meu ser. Nada importava, apenas meus atos e minha entrega a cada um deles com todo meu ser, como se somente me restasse esse ato. Como se fosse a última vez que o faria na face da terra. Pleno dessa consciência somente me restava dormir e ver como seria o dia seguinte.
Dia
Após a bebedeira da noite acordamos cedo, porém mais tarde que o normal. O sol já tocava tudo com seu brilho suave de inverno. Fui buscar o leite e me detive em casa de um vizinho que me convidara a tomar um café. Conversamos como compadres, como se o fizéssemos há muito. Foi uma conversa suave de colheitas e clima, enquanto as galinhas ciscavam ao redor. A fumaça do fogão a lenha subia lenta e seu aroma se espalhava como incenso em um templo perdido no tempo.
Fim da conversa caminhei pelo pasto quente. Os lagartos se escondendo a minha passagem, as corujas gritando mais uma vez enquanto voavam ao meu redor me escoltando até sair de sua área de vida. Cheguei à casa e encontrei Matheus e Mara arrumando e limpando tudo. O pai de Mara arrumava suas coisas para partir. Ajudei na limpeza até a hora em que levariam o pai de Mara para a cidade, onde pegaria o ônibus que o levaria de volta a São Paulo.
Levaram-no antes do almoço. Mais uma vez fiquei só no sítio entregue a novas tarefas. Repetia mecanicamente o ritual de limpar touceiras de narpiê onde fosse necessário, Marcelo já me instruíra a respeito antes de ir à cidade. Trabalhava duro, ritmicamente, para a intervalos longos, enrolava um cigarro e o fumava com prazer antes de retomar o trabalho. A lâmina afiada do enxadão cintilava sob os raios do sol da tarde quando ouvi a perua chegando de volta da cidade.
Marcelo se trocou e veio me acompanhar no trabalho. Terminamos antes do habitual. Era a última tarefa a que nos havíamos proposto. Andamos pela propriedade avaliando o que fizéramos e projetando o que faríamos em outra oportunidade. Nossa temporada de trabalho no campo chegara ao fim. Os fardos de capim envolvendo a composteira, a fumaça saindo pela chaminé da casa, a água escorrendo pela mangueira, coisas inexistentes antes de nossa chegada nos davam enorme satisfação do trabalho realizado. Caminhamos lentamente acariciando tudo com os olhos, guardando cada detalhe como se nunca mais fossemos voltar, como se fosse nosso último dia na terra. Uma melancolia eufórica nos inundava. A cada respiração parecia que os dourados raios do sol de inverno nos invadiam o peito enchendo-nos de luz.
Terminamos a vistoria, fui para meu banho ritual, nessa noite prepararíamos o que faltava para a viagem de retorno.
Noite
À meia luz via fumaça subindo lentamente em espirais quase horizontais. Nem a penumbra nem a fumaça aliviavam minha raiva. Caíra em minha própria armadilha, deixara me levar, mais uma vez, pela lei dos homens. Reagi como alguém normal ante a impossibilidade de fazer. Pensamentos de aniquilação em massa passaram por minha mente ainda doentia.
Senti a energia enorme saindo do baixo ventre percorrendo cada milímetro pelo centro do corpo ativando canais, iluminando-os, excitando-os. Quando chegou a minha cabeça senti cada polegada de meu crânio vibrando ante a potência dessa energia. Ela explodiu em uma ira além dos limites humanos da demência, da loucura ou da administração pública. Pensei em cada homem público que se esbaldava na matéria às custas do horror e do sofrimento humano de seus pares em todas as nações. Discutiam em jantares nababescos exacerbando seu sibaritismo. Suas taras encobertas por uma camada fina de polidez e correção nojentas.
Discurso politicamente correto de intelectualóides de merda encontravam-se cegos ao horror que criavam. Seus descendentes colheriam os frutos podres da desolação planetária em meio a guerras estúpidas e carnavais carnais e idiotizantes.
Não importava, minha fúria era pura além dessas mentes medíocres que se contentavam com pouco. Eu queria o horror pelo horror. A morte de milhões de seres humanos sem o menor aviso, sentido ou reivindicação política ou resgate milionário. Deixei a fúria subir e atingir seu grau máximo até o primeiro encontro com algo mais humano.
Então olhei para aquele ser que se me assemelhava olhando atônito, sem compreender o que me acontecia. Percebi que tentava colocar um pouco de lógica em meus impulsos, mas tudo sucumbiu ante o olhar daquele que eu amava. Me desloquei mais um pouco e encontrei outro ser a quem também amava e a energia que se voltava pára a destruição sem sentido da humanidade sem rosto se converteu lentamente em uma força que levava em outra definitiva direção.
Desconhecida direção para mundos paralelos onde a perspectiva era outra. Onde a mediocridade era um reflexo do medo dos grandes egos que se deslocavam pelo planeta. Não cheguei a sentir pena ou compaixão por essas pobres entidades ocas e desorientadas. Um iluminado já dissera há muito que eles não sabiam o que faziam. Eu agradeci pela possibilidade de saltar sobre o abismo de minha mente e controlar minha loucura convertendo-a em normalidade aparente. Eu era um guerreiro, só me restava a batalha diária contra o maior dos inimigos. Um inimigo implacável que apenas espreitava um momento de fraqueza para me dominar completamente. Meu ego em todas suas manifestações sedutoras. Prometendo-me poder, fama, grana e reconhecimento.
Nesse instante de insanidade temporária senti que algo se quebrara em mim. A dissociação fora sutil, mas forte o suficiente para senti-la mesmo sem me concentrar profundamente. Era algo real que me impulsionava de dentro para fora e de fora para dentro, transformando minha percepção e me acalmando. Minha mente se rendeu à neutralização das flutuações mentais até atingir o equilíbrio da superfície de um lago imperturbável. Naquele momento senti que uma nova energia e uma velha condição voltava a meu ser. Nada importava, apenas meus atos e minha entrega a cada um deles com todo meu ser, como se somente me restasse esse ato. Como se fosse a última vez que o faria na face da terra. Pleno dessa consciência somente me restava dormir e ver como seria o dia seguinte.


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