domingo, março 26, 2006

ARCEBURGO - 15

– 28/07/85 –

Dia

Após três dias de trabalho árduo uma pilha de terra se formava ao lado dos tijolos e do cimento que havíamos levado até o poço para começar a construir o tanque. O barranco havia sido cortado simetricamente e formava um retângulo perfeito. Fiquei encarregado de fazer a mistura do cimento com areia e água, alternava esta tarefa carregando tijolos para que Marcelo e o pai de Mara fizessem seu trabalho de levantar as paredes do tanque. O pai de Mara ajustava sistematicamente os tijolos assentados por Marcelo verificando seu prumo e fazendo os reparos necessários. Marcelo parecia uma máquina de assentar tijolos. Eu me entregava às duas tarefas de abastecê-los sem parar passando do cimento aos tijolos cadenciadamente. O céu de inverno estava azul e o sol nos castigava sem piedade.

Pouco a pouco o tanque foi tomando forma com as paredes subindo como que tentando sair do leito do córrego, escalavam o barranco apontando para o céu. O frescor no interior do tanque aumentava à medida que as paredes subiam. Assim terminamos mais um dia de trabalho misturando cimento, assentando tijolos e fazendo paredes. Paredes que moldariam a água que encheria o tanque quando estivesse pronto.

Noite

Nos caminhos tortuosos de minha mente doentia passei a noite rolando na cama em sonhos hiper-reais que me banharam em suor e me fizeram acordar atordoado. Percebia cada partícula dos objetos que via, era um ver-sentir insuportavelmente material, real e quase doloroso. A suave realidade do dia-a-dia parecia distante. Compreendi a limitação proposital da tomada de consciência dos objetos de minha percepção. Essa limitação era necessária, era imposta por padrões comportamentais que me faziam considerar real apenas aquilo que via, sem discussões filosóficas ou metafísicas demais. A consciência filtrava e deixava tudo no lugar. Acrescentava uma noção exata de continuidade e direcionalidade fatal. O destino estava escrito nas estrelas ou determinado por um Deus antropomórfico maniqueísta, vingativo e seletivo. Quando não antropomórfico intencionalmente humano, punindo, recompensando, exilando ou perdoando.

A esquizofrenia natural de possuir dois cérebros era também produto de uma consciência parcial que determinava a dominação de um dos hemisférios encefálicos. Eu possuía além dela a esquizofrenia auto-imposta que me fragmentava o ser. Tinha uma tendência a realizar vivências múltiplas no mesmo espaço-tempo. Acreditava que isso era normal. Pouco a pouco, no entanto percebi que havia uma grande diferença na percepção temporal que eu possuía e aquela de meus semelhantes. Calava-me embora não concordasse que o tempo se deslocava mais rapidamente a cada ano.

Era isso que me fazia rolar na cama tornando as noites mais longas, os dias intermináveis, os anos eternos. Sabia que o espaço-tempo se extinguia no ritmo da vida para minha percepção normal. As portas para outras dimensões estavam ali, mas não as reconhecia sempre. Quando isso acontecia vagava em dimensões mais que paralelas, eram dimensões simultâneas, mutuamente exclusivas, mas interligadas. Vi minhas pernas em sonho, estava sentado no alto de uma pilha de cascalho sobre um telhado de concreto. Senti o contato do cascalho em meus glúteos, a brisa em meu rosto, levantei o olhar e contemplei a paisagem. Havia outros prédios, próximos e distantes, muito verde se espalhando entre eles, pessoas a caminhar. Soube, então, que estava sonhando ou vivendo em outra dimensão em outra realidade.