ARCEBURGO - 10
– 21/07/85 –
Dia
Levantamos excitados ante a expectativa de iniciar o mais importante trabalho que faríamos no sítio, nosso objetivo maior na empreitada. Começaríamos colocando a mangueira para a captação na nascente e a desenrolaríamos metro a metro pelo leito do córrego aproveitando o declive do terreno até um ponto em que desviaríamos para a casa, ao lado da cozinha. Levar o rolo da mangueira até a nascente foi um desafio físico, pois além de carrega-la tínhamos que abrir, em alguns pontos, picadas de acesso. Quando chegamos à nascente paramos e nos deliciamos com sua água fresca e com a tranqüilidade do ambiente ao redor. As sombras projetadas pelas copas refrescavam e filtravam o forte sol de inverno que brilhava acima.
Começamos o trabalho após a pequena pausa de descanso. Desenrolávamos a mangueira metro a metro procurando o melhor percurso e enterrando-a no leito do córrego sempre que possível. Marcelo limpava o leito à frente indicando o percurso enquanto eu carregava nas costas e ombros a mangueira. Parávamos e voltávamos enterrando-a. Nossos pés afundando na lama fina do leito e das margens, ao abrirmos a vala para enterrar a mangueira água e lama subiam para o ar sob a força de nossos enxadões atirando lama e água em nossos rostos. Avançávamos lentamente pela floresta em um trabalho insano e extenuante.
Em determinado momento Marcelo se adiantou limpando o terreno à frente pelo leito do córrego deixando-me para trás com a mangueira. Estávamos próximo ao final do trecho de floresta e ele queria ver como estava a situação no antigo açude de gado que drenáramos dias atrás. Continuei sozinho a realizar o trabalho de desenrolar a mangueira e voltar para enterra-la no leito do córrego. A cada passo que avançava minhas pernas se enterravam mais na lama dificultando o trabalho e deixando-me furioso a cada escorregada que dava.
Estava concentrado procurando não desperdiçar minha energia, respirava pelo nariz e soltava o ar devagar a cada esforço que realizava. Quando vi a claridade do campo insinuando-se pela folhagem da floresta. Parei com meu trabalho, subi silenciosamente pela vertente inclinada que levava parta dentro da floresta pretendendo surpreender Marcelo e assusta-lo somente para brincar. Fui de árvore em árvore andando silenciosamente evitando pisar as folhas e galhos secos caídos. Subi quase até o topo para poder fazer uma aproximação furtiva sem que fosse visto. Quando descia em direção onde Marcelo se encontrava ouvi vozes em uma conversa áspera. Diminui meu ritmo de descida, apurei os ouvidos e me esgueirei até uma rocha saliente um pouco acima de onde estava o açude que havíamos drenado.
Marcelo estava no leito do córrego com as pernas enterradas na lama segurando seu enxadão e olhava para cima. Parados na margem oposta dois homens montados. Um em um cavalo de raça, o outro em um cavalo híbrido. Era o “coronel” vizinho de Marcelo e seu capanga ostensivamente armado. Acompanhei a conversa em silêncio e fora do ângulo de visão de todos. A ameaça explícita do “coronel” era mais enfática pela presença de seu capanga que encarava Marcelo belicosamente. Como não obtivera a passividade servil de Marcelo anteriormente o “coronel” ameaçava com suas armas sem perder sua pose colonial. Ele exigia, apesar da decisão judicial em contrário, que Marcelo mantivesse o açude para que seu gado saciasse sua sede. Marcelo argumentava que ele precisava da água para sua futura lavoura e por isso procurava restituir o curso natural do córrego.
Sentindo o aumento da tensão entre eles decidi fazer uma aparição que os desnorteasse. Subi na rocha em que me escondia e do alto interrompi a conversa perguntando se estava tudo bem. O “coronel” e seu capanga olharam para cima surpresos com minha interrupção, desviando os olhos de Marcelo que imediatamente saiu do leito do córrego e se colocou ao lado do coronel fora da linha de tiro do capanga. A maior surpresa deles, sem dúvida, deveu-se à interrupção e às roupas que eu usava. Quando fora convidado por Marcelo e Mara para trabalhar no sítio deles optara por levar um uniforme de guerra na selva que ganhara de um amigo tempos atrás. A camuflagem do uniforme associada a meu rosto enlameado, à boina verde que levava à cabeça e à falta de expressão em meu olhar que se fixava nos olhos do capanga foram um fator decisivo no rumo do encontro.
Não trocamos bravatas, o “coronel” me perguntou a que batalhão pertencia e eu lhe respondi que isso eram assunto e interesse apenas militar e que um civil como ele não tinha acesso a essas informações, mas que se ele insistisse em fazer ameaças sem dúvida seria visitado uma noite dessas por algumas pessoas que lhe dariam todas as informações que quisesse. Sorrindo com um toque de insegurança o “coronel” disse que era só curiosidade que não havia nada de errado em conversar com os vizinhos e que estava tudo bem. O capanga olhava para o “coronel” e para mim que não tirava os olhos dele enquanto segurava uma faca escondida em minha mão direita. Uma profusão de frases desconexas irromperam do “coronel” e de seu capanga um pouco antes deles se retirarem amistosamente. Marcelo e eu retomamos nosso trabalho indo para o interior da floresta pelo córrego. Quando chegamos onde estava a mangueira largamos nossos corpos, cada um em uma margem e desatamos a rir histericamente, gargalhávamos sem parar. Não acreditávamos no que acabara de acontecer. Poderíamos ter morrido ali mesmo ante a ameaça explícita do “coronel” e seu capanga.
Quando terminou o histerismo procuramos regularizar nossas respirações e então Marcelo se lembrou que Mara estava sozinha na casa. Saiu em disparada pela floresta e eu decidi seguir por outro caminho. Chegamos à casa, Marcelo pelo caminho mais direto, eu sem ser visto pela lateral. Me deslocava tenso arrastando-me pelo chão, escondendo-me por trás das árvores e assim cheguei á casa pela porta de trás a tempo de ouvir as gargalhadas de Mara e Marcelo. Juntei-me a eles nas gargalhadas aumentando-as ao contar como chegara até ali. Antes de retomarmos nosso trabalho ajudamos a Mara com as tarefas domésticas mais pesadas e aproveitamos para tomar um café.
Noite
Vi seus braços cruzados e o semblante duro apesar da distância. Podia até mesmo vê-lo ou imaginar que o via a correr e saltar pelos campos ou ruas de uma movimentada cidade. Ou poderia estar no telhado espiando as meninas a urinar acocoradas atrás da igreja e assobiar para elas desde a escuridão da noite, enquanto a quermesse preenchia o ar com sons metálicos, mais que humanos.
E naquele fervilhar de olhares, copos, fumaça e música estridente, perceber a mancha de óleo no canto esquerdo do pé da mesa. E percebe-la por estar olhando para alguém que perdera significado por desconhecido ser ou porque seu olhar transmitia a insuportável marca da monotonia do pasto e de horizontes largos. E imaginar que as estrelas estavam, hora sim, hora não, em algum lugar definido, porque ao olhar para o chão não restava mais que a areia e pegadas de alguém que havia passado. E, ainda, apesar das nuvens, entrever as estrelas e planetas que se confundiam sobre o fundo escuro do universo. Desencontrado assim, o pensar e o fazer.
Entrar no primeiro bar e pedir um café, não por beber, apenas para contemplar o que acontecia comigo. Caminhava na cidade, sabia para onde ia, mas a repentina onde de imagens de um passado distante que me invadira criara uma profunda vertigem. Quase não conseguia pôr um pé ante o outro para continuar minha caminhada até o primeiro apoio que pudesse encontrar. Santo bar e seu café reconfortante, um cigarro para disfarçar. A tragada nervosa enquanto contemplava a calçada e as pessoas para ter certeza de que estava onde estava. Para ter certeza que a realidade ainda era a mesma e eu um só. Inspirar profundamente antes do primeiro gole e aspirar o aroma quase doce do café fumegante para restabelecer o equilíbrio e afastar o tremor do corpo estabilizando as mãos.
Tudo estava normal de novo. A calçada parecia sólida e as pessoas iam e vinham como sempre. Carros buzinavam e seus motores roncavam em freqüências muito próximas. Paguei a conta e me lancei á calçada entre todos. Segui o fluxo sem interceptar nenhuma trajetória. Caminhava com uma fluidez fora do normal. Sentia o ar entre as pessoas como se fosse um fluído de densidade nova. Como se fosse sugado pelo fluxo incessante de ir e vir de todos os dias.
Dia
Levantamos excitados ante a expectativa de iniciar o mais importante trabalho que faríamos no sítio, nosso objetivo maior na empreitada. Começaríamos colocando a mangueira para a captação na nascente e a desenrolaríamos metro a metro pelo leito do córrego aproveitando o declive do terreno até um ponto em que desviaríamos para a casa, ao lado da cozinha. Levar o rolo da mangueira até a nascente foi um desafio físico, pois além de carrega-la tínhamos que abrir, em alguns pontos, picadas de acesso. Quando chegamos à nascente paramos e nos deliciamos com sua água fresca e com a tranqüilidade do ambiente ao redor. As sombras projetadas pelas copas refrescavam e filtravam o forte sol de inverno que brilhava acima.
Começamos o trabalho após a pequena pausa de descanso. Desenrolávamos a mangueira metro a metro procurando o melhor percurso e enterrando-a no leito do córrego sempre que possível. Marcelo limpava o leito à frente indicando o percurso enquanto eu carregava nas costas e ombros a mangueira. Parávamos e voltávamos enterrando-a. Nossos pés afundando na lama fina do leito e das margens, ao abrirmos a vala para enterrar a mangueira água e lama subiam para o ar sob a força de nossos enxadões atirando lama e água em nossos rostos. Avançávamos lentamente pela floresta em um trabalho insano e extenuante.
Em determinado momento Marcelo se adiantou limpando o terreno à frente pelo leito do córrego deixando-me para trás com a mangueira. Estávamos próximo ao final do trecho de floresta e ele queria ver como estava a situação no antigo açude de gado que drenáramos dias atrás. Continuei sozinho a realizar o trabalho de desenrolar a mangueira e voltar para enterra-la no leito do córrego. A cada passo que avançava minhas pernas se enterravam mais na lama dificultando o trabalho e deixando-me furioso a cada escorregada que dava.
Estava concentrado procurando não desperdiçar minha energia, respirava pelo nariz e soltava o ar devagar a cada esforço que realizava. Quando vi a claridade do campo insinuando-se pela folhagem da floresta. Parei com meu trabalho, subi silenciosamente pela vertente inclinada que levava parta dentro da floresta pretendendo surpreender Marcelo e assusta-lo somente para brincar. Fui de árvore em árvore andando silenciosamente evitando pisar as folhas e galhos secos caídos. Subi quase até o topo para poder fazer uma aproximação furtiva sem que fosse visto. Quando descia em direção onde Marcelo se encontrava ouvi vozes em uma conversa áspera. Diminui meu ritmo de descida, apurei os ouvidos e me esgueirei até uma rocha saliente um pouco acima de onde estava o açude que havíamos drenado.
Marcelo estava no leito do córrego com as pernas enterradas na lama segurando seu enxadão e olhava para cima. Parados na margem oposta dois homens montados. Um em um cavalo de raça, o outro em um cavalo híbrido. Era o “coronel” vizinho de Marcelo e seu capanga ostensivamente armado. Acompanhei a conversa em silêncio e fora do ângulo de visão de todos. A ameaça explícita do “coronel” era mais enfática pela presença de seu capanga que encarava Marcelo belicosamente. Como não obtivera a passividade servil de Marcelo anteriormente o “coronel” ameaçava com suas armas sem perder sua pose colonial. Ele exigia, apesar da decisão judicial em contrário, que Marcelo mantivesse o açude para que seu gado saciasse sua sede. Marcelo argumentava que ele precisava da água para sua futura lavoura e por isso procurava restituir o curso natural do córrego.
Sentindo o aumento da tensão entre eles decidi fazer uma aparição que os desnorteasse. Subi na rocha em que me escondia e do alto interrompi a conversa perguntando se estava tudo bem. O “coronel” e seu capanga olharam para cima surpresos com minha interrupção, desviando os olhos de Marcelo que imediatamente saiu do leito do córrego e se colocou ao lado do coronel fora da linha de tiro do capanga. A maior surpresa deles, sem dúvida, deveu-se à interrupção e às roupas que eu usava. Quando fora convidado por Marcelo e Mara para trabalhar no sítio deles optara por levar um uniforme de guerra na selva que ganhara de um amigo tempos atrás. A camuflagem do uniforme associada a meu rosto enlameado, à boina verde que levava à cabeça e à falta de expressão em meu olhar que se fixava nos olhos do capanga foram um fator decisivo no rumo do encontro.
Não trocamos bravatas, o “coronel” me perguntou a que batalhão pertencia e eu lhe respondi que isso eram assunto e interesse apenas militar e que um civil como ele não tinha acesso a essas informações, mas que se ele insistisse em fazer ameaças sem dúvida seria visitado uma noite dessas por algumas pessoas que lhe dariam todas as informações que quisesse. Sorrindo com um toque de insegurança o “coronel” disse que era só curiosidade que não havia nada de errado em conversar com os vizinhos e que estava tudo bem. O capanga olhava para o “coronel” e para mim que não tirava os olhos dele enquanto segurava uma faca escondida em minha mão direita. Uma profusão de frases desconexas irromperam do “coronel” e de seu capanga um pouco antes deles se retirarem amistosamente. Marcelo e eu retomamos nosso trabalho indo para o interior da floresta pelo córrego. Quando chegamos onde estava a mangueira largamos nossos corpos, cada um em uma margem e desatamos a rir histericamente, gargalhávamos sem parar. Não acreditávamos no que acabara de acontecer. Poderíamos ter morrido ali mesmo ante a ameaça explícita do “coronel” e seu capanga.
Quando terminou o histerismo procuramos regularizar nossas respirações e então Marcelo se lembrou que Mara estava sozinha na casa. Saiu em disparada pela floresta e eu decidi seguir por outro caminho. Chegamos à casa, Marcelo pelo caminho mais direto, eu sem ser visto pela lateral. Me deslocava tenso arrastando-me pelo chão, escondendo-me por trás das árvores e assim cheguei á casa pela porta de trás a tempo de ouvir as gargalhadas de Mara e Marcelo. Juntei-me a eles nas gargalhadas aumentando-as ao contar como chegara até ali. Antes de retomarmos nosso trabalho ajudamos a Mara com as tarefas domésticas mais pesadas e aproveitamos para tomar um café.
Noite
Vi seus braços cruzados e o semblante duro apesar da distância. Podia até mesmo vê-lo ou imaginar que o via a correr e saltar pelos campos ou ruas de uma movimentada cidade. Ou poderia estar no telhado espiando as meninas a urinar acocoradas atrás da igreja e assobiar para elas desde a escuridão da noite, enquanto a quermesse preenchia o ar com sons metálicos, mais que humanos.
E naquele fervilhar de olhares, copos, fumaça e música estridente, perceber a mancha de óleo no canto esquerdo do pé da mesa. E percebe-la por estar olhando para alguém que perdera significado por desconhecido ser ou porque seu olhar transmitia a insuportável marca da monotonia do pasto e de horizontes largos. E imaginar que as estrelas estavam, hora sim, hora não, em algum lugar definido, porque ao olhar para o chão não restava mais que a areia e pegadas de alguém que havia passado. E, ainda, apesar das nuvens, entrever as estrelas e planetas que se confundiam sobre o fundo escuro do universo. Desencontrado assim, o pensar e o fazer.
Entrar no primeiro bar e pedir um café, não por beber, apenas para contemplar o que acontecia comigo. Caminhava na cidade, sabia para onde ia, mas a repentina onde de imagens de um passado distante que me invadira criara uma profunda vertigem. Quase não conseguia pôr um pé ante o outro para continuar minha caminhada até o primeiro apoio que pudesse encontrar. Santo bar e seu café reconfortante, um cigarro para disfarçar. A tragada nervosa enquanto contemplava a calçada e as pessoas para ter certeza de que estava onde estava. Para ter certeza que a realidade ainda era a mesma e eu um só. Inspirar profundamente antes do primeiro gole e aspirar o aroma quase doce do café fumegante para restabelecer o equilíbrio e afastar o tremor do corpo estabilizando as mãos.
Tudo estava normal de novo. A calçada parecia sólida e as pessoas iam e vinham como sempre. Carros buzinavam e seus motores roncavam em freqüências muito próximas. Paguei a conta e me lancei á calçada entre todos. Segui o fluxo sem interceptar nenhuma trajetória. Caminhava com uma fluidez fora do normal. Sentia o ar entre as pessoas como se fosse um fluído de densidade nova. Como se fosse sugado pelo fluxo incessante de ir e vir de todos os dias.


0 Comments:
Postar um comentário
<< Home