ARCEBURGO - 8
– 19/07/85 –
Dia
O dia começou como os anteriores, com os mugidos das vacas saindo de seu refúgio noturno e os gritos do “homem das vacas”. Regamos as mudas depois que voltei com o leite. Tomamos nosso café otimistas pelo andamento dos trabalhos apesar do cansaço. Nossos músculos urbanos não estavam totalmente acostumados ao trabalho árduo de sol a sol, dia após dia. Verificamos e afiamos nossas ferramentas, enquanto eu fumava um cigarro, sentados à porta da cozinha contemplando o novo aspecto do córrego que cortava a propriedade a uns cem metros de nós.
Partimos para o açude que havíamos drenado acompanhando o leito do córrego que parecia renovado com a água correndo. A terra dos barrancos em suas margens começavam a adquirir um tom mais escuro produzido pela chagada da água. Novos odores emanavam do solo úmido como uma promessa de renovação da vida. Caminhávamos satisfeitos e orgulhosos de nosso trabalho.
Chegando ao antigo pequeno açude verificamos que a lama diminuíra devido à drenagem da água anteriormente represada. Ainda havia alguns arranjos a fazer. Deveríamos afundar mais um pouco o leito do córrego e rearranjar a terra de suas margens. Foi o que fizemos, replantando ainda mais alguns arbustos silvestres. A erosão que subia para a vertente do vizinho seria aos poucos contida e, caso a regeneração fosse possível e estimulada por nós, ocorreria a revegetação acabando com o processo que destruía a terra lentamente, ano a ano.
Concluímos o trabalho no pequeno açude um pouco mais tarde que o normal e fomos almoçar exaustos e cobertos de lama que secou até chegarmos à casa. Combinamos, durante o almoço, que subiríamos pelo córrego até atingir a nascente verificando qual era o exato ponto onde a água aflorava da mãe-terra.
Quando retomamos nosso trabalho subimos pelo córrego cujo leito ia, aos poucos, tornando-se mais arenoso, sua água mais límpida e fria conforme penetrávamos na floresta. Apenas afastávamos a vegetação que se interpunha em nosso caminho, não queríamos perturbar o ambiente mais do que o necessário para nosso objetivo. Chegando finalmente à nascente paramos um pouco para contemplar a absorver a tranqüilidade e a paz do ambiente que nos cercava. As vertentes fortemente inclinadas subiam como paredes verticais produzindo uma sombra fria, os poucos raios solares que penetravam pela vegetação densa criavam uma atmosfera quase irreal naquele refúgio, sentíamos como se estivéssemos cercados por uma enorme floresta.
Em seguida com uma trena de cinqüenta metros começamos a medir a distância entre a nascente e o ponto onde ficaria a o tanque de reserva de água que faríamos em seguida. Chegando ao ponto em que faríamos o tanque paramos e estudamos o terreno para medir o tamanho exato colocando estacas e delimitando o local com fita plástica amarela e preta. Calculamos a profundidade e verificamos quanto teríamos que cavar para fazer o reservatório. Terminadas as medições no local medimos a distância até a casa. Precisávamos calcular a distância exata para comprarmos uma metragem suficiente de uma mangueira que levaria a água da nascente até o tanque e deste até a casa.
Nossa tarefa do dia estava concluída e ainda tínhamos duas horas de sol que aproveitamos ajudando Mara nas tarefas domésticas que incluíam o rearranjo do jardim no entorno da casa. Deslocamos pedras, arrancamos touceiras de capim indesejáveis, pegamos mais lenha. Fizemos até uma roda de fogueira com pedras improvisando bancos. Nosso dia acabou ameno. Para mim como sempre, o treino final e depois o banho de balde contemplando o pôr de sol.
Noite
Caminhava pela noite de ruas desertas e frias como quem caminha fugindo de algo que desconhece. Levei algum tempo até perceber que fugia de uma sensação que se avolumava em meu interior. Nascia em meu ventre e se espalhava pelo corpo subindo e acompanhando a espinha. Passo após passo a percepção dos sons foi se alterando. Parecia que ouvia os sons de meus passos de dois lugares simultâneos. Um era o nítido som que provinha de fora, da rua, da calçada, o outro parecia se propagar por minhas pernas e atingir meu crânio um pouco defasado temporalmente. A percepção dupla de tudo foi crescendo enquanto caminhava e eu estranhava tudo o que via e ouvia naquelas ruas conhecidas.
E se ainda hoje acho estranho é porque não virei à esquerda na rua anterior e acabei encontrando alguém e entrando num bar abrigando-me do frio com as vozes e luzes meio lentas e hipnóticas. Não deixava de ser um lugar a se considerar incomum. Tinha a exata percepção dupla de tudo o que ocorria ali, duas velocidades de acontecimento produziam o efeito de dois corpos a ocuparem o mesmo espaço em freqüências diferentes.
Não era o único a perceber assim, mas não eram todos que percebiam. Os que não tomavam contato com esta dualidade temporal eram para nós o fluído que nos permitia atingir o duplo ser ou a simultaneidade de ser e não-ser. Celebrávamos a cada encontro o início de uma centelha que se espalhava pelo infinitamente pequeno imitando o infinitamente grande. As portas se multiplicavam assim como as sombras, iluminadas por uma tênue luz vermelho azulada.
Dia
O dia começou como os anteriores, com os mugidos das vacas saindo de seu refúgio noturno e os gritos do “homem das vacas”. Regamos as mudas depois que voltei com o leite. Tomamos nosso café otimistas pelo andamento dos trabalhos apesar do cansaço. Nossos músculos urbanos não estavam totalmente acostumados ao trabalho árduo de sol a sol, dia após dia. Verificamos e afiamos nossas ferramentas, enquanto eu fumava um cigarro, sentados à porta da cozinha contemplando o novo aspecto do córrego que cortava a propriedade a uns cem metros de nós.
Partimos para o açude que havíamos drenado acompanhando o leito do córrego que parecia renovado com a água correndo. A terra dos barrancos em suas margens começavam a adquirir um tom mais escuro produzido pela chagada da água. Novos odores emanavam do solo úmido como uma promessa de renovação da vida. Caminhávamos satisfeitos e orgulhosos de nosso trabalho.
Chegando ao antigo pequeno açude verificamos que a lama diminuíra devido à drenagem da água anteriormente represada. Ainda havia alguns arranjos a fazer. Deveríamos afundar mais um pouco o leito do córrego e rearranjar a terra de suas margens. Foi o que fizemos, replantando ainda mais alguns arbustos silvestres. A erosão que subia para a vertente do vizinho seria aos poucos contida e, caso a regeneração fosse possível e estimulada por nós, ocorreria a revegetação acabando com o processo que destruía a terra lentamente, ano a ano.
Concluímos o trabalho no pequeno açude um pouco mais tarde que o normal e fomos almoçar exaustos e cobertos de lama que secou até chegarmos à casa. Combinamos, durante o almoço, que subiríamos pelo córrego até atingir a nascente verificando qual era o exato ponto onde a água aflorava da mãe-terra.
Quando retomamos nosso trabalho subimos pelo córrego cujo leito ia, aos poucos, tornando-se mais arenoso, sua água mais límpida e fria conforme penetrávamos na floresta. Apenas afastávamos a vegetação que se interpunha em nosso caminho, não queríamos perturbar o ambiente mais do que o necessário para nosso objetivo. Chegando finalmente à nascente paramos um pouco para contemplar a absorver a tranqüilidade e a paz do ambiente que nos cercava. As vertentes fortemente inclinadas subiam como paredes verticais produzindo uma sombra fria, os poucos raios solares que penetravam pela vegetação densa criavam uma atmosfera quase irreal naquele refúgio, sentíamos como se estivéssemos cercados por uma enorme floresta.
Em seguida com uma trena de cinqüenta metros começamos a medir a distância entre a nascente e o ponto onde ficaria a o tanque de reserva de água que faríamos em seguida. Chegando ao ponto em que faríamos o tanque paramos e estudamos o terreno para medir o tamanho exato colocando estacas e delimitando o local com fita plástica amarela e preta. Calculamos a profundidade e verificamos quanto teríamos que cavar para fazer o reservatório. Terminadas as medições no local medimos a distância até a casa. Precisávamos calcular a distância exata para comprarmos uma metragem suficiente de uma mangueira que levaria a água da nascente até o tanque e deste até a casa.
Nossa tarefa do dia estava concluída e ainda tínhamos duas horas de sol que aproveitamos ajudando Mara nas tarefas domésticas que incluíam o rearranjo do jardim no entorno da casa. Deslocamos pedras, arrancamos touceiras de capim indesejáveis, pegamos mais lenha. Fizemos até uma roda de fogueira com pedras improvisando bancos. Nosso dia acabou ameno. Para mim como sempre, o treino final e depois o banho de balde contemplando o pôr de sol.
Noite
Caminhava pela noite de ruas desertas e frias como quem caminha fugindo de algo que desconhece. Levei algum tempo até perceber que fugia de uma sensação que se avolumava em meu interior. Nascia em meu ventre e se espalhava pelo corpo subindo e acompanhando a espinha. Passo após passo a percepção dos sons foi se alterando. Parecia que ouvia os sons de meus passos de dois lugares simultâneos. Um era o nítido som que provinha de fora, da rua, da calçada, o outro parecia se propagar por minhas pernas e atingir meu crânio um pouco defasado temporalmente. A percepção dupla de tudo foi crescendo enquanto caminhava e eu estranhava tudo o que via e ouvia naquelas ruas conhecidas.
E se ainda hoje acho estranho é porque não virei à esquerda na rua anterior e acabei encontrando alguém e entrando num bar abrigando-me do frio com as vozes e luzes meio lentas e hipnóticas. Não deixava de ser um lugar a se considerar incomum. Tinha a exata percepção dupla de tudo o que ocorria ali, duas velocidades de acontecimento produziam o efeito de dois corpos a ocuparem o mesmo espaço em freqüências diferentes.
Não era o único a perceber assim, mas não eram todos que percebiam. Os que não tomavam contato com esta dualidade temporal eram para nós o fluído que nos permitia atingir o duplo ser ou a simultaneidade de ser e não-ser. Celebrávamos a cada encontro o início de uma centelha que se espalhava pelo infinitamente pequeno imitando o infinitamente grande. As portas se multiplicavam assim como as sombras, iluminadas por uma tênue luz vermelho azulada.


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