domingo, janeiro 15, 2006

ARCEBURGO - 7

– 18/07/85 –

Dia

Terminamos de limpar o córrego removendo as touceiras de narpiê que impediam seu fluxo constante. Rearranjamos as rochas que estavam na margem fazendo pequenos remansos e acentuando pequenas corredeiras. Enfim, retificamos o leito do córrego e lhe devolvemos seu aspecto natural. Mantivemos os arbustos presentes em suas margens e transplantamos outros próximos para conter o avanço da erosão. A paisagem realmente estava se modificado dando-nos um prazer especial.

Após o almoço nos dedicamos a outra tarefa a ser realizada. Fomos até a cerca de um vizinho que criava gado. Ele era conhecido apenas como “Coronel”, grande fazendeiro regional e possuidor de vários sítios e fazendas que administrava pessoalmente com mão de ferro, um pouco de contravenção, alguns toques de ilegalidade e muita pressão pessoal sobre os mais simplórios. Situação típica do Brasil rural que se mantinha e desabrochava renovada a cada geração devido à impunidade, à mesquinhez, à ganância e, é claro, à estupidez humana.

Não deveria ser diferente em qualquer país de grandes dimensões territoriais que tivesse alguma região agropastoril com forte ausência de um poder centralizador. Apesar de sua ética duvidosa esses “coronéis” do mundo eram bons, amigos, pais, maridos e cristãos freqüentadores de suas igrejas protestantes ou não, o que acentuava sua deformação ética e moral. Eram produto de uma lógica tortuosa associada a uma política corrupta e insana que colhia seus frutos em uma sociedade cada vez mais desigual.

Mesmo levando em conta que estaríamos tocando num ponto sensível da vizinhança com o “Coronel” fomos até o açude improvisado que ele fizera em terras legalmente pertencentes a Marcelo segundo escritura registrada em cartório e legitimada após um processo judicial no qual o “Coronel” perdera o direito a explorar a água alheia principalmente por não querer negociar com “o moço da cidade”.

Sentamos à margem do pequeno açude fétido deixando as ferramentas de lado. Enrolei um cigarro e começamos a analisar a situação que teríamos que resolver. A cerca com o “Coronel” deveria ser refeita e deveria ser bem reforçada para impedir a passagem do gado já condicionado. Fixamos bem os mourões, esticamos as várias linhas de arame farpado sob a orientação salvadora do incrível “homem das vacas” que parecia aparecer sempre que precisávamos, como que surgindo do nada. Chegamos a desconfiar que nos observava de longe esperando o momento em que demonstrássemos não saber o que fazer ao coçar e balançar nossas cabeças.

Assim que terminamos de reforçar a cerca, com o suor a escorrer pelo corpo e o sangue a escorrer pelas mãos, mexer com arame farpado não era mesmo nossa especialidade, deslocamos nossa atenção para o que deveríamos fazer para drenar adequadamente o pequeno açude. Aumentamos a vazão que restituiria o fluxo de água do córrego, ajustamos várias pedras das margens e da vertente acima. Aprofundamos o leito principal segundo um desenho que nos pareceu natural e escavamos os barrancos laterais para aterrar porções enlameadas. Aqui também tivemos o cuidado de transplantar alguns arbustos silvestres das margens para conter a erosão presente.

As enxadas e enxadões zuniam no ar para estourar na água e arrancar os torrões de terra que ela escondia. Quando as ferramentas impulsionadas por nossos corpos atingiam a terra sob a água subiam para o ar atingindo nossos rosto e roupas colunas de água barrenta e fedendo a esterco bovino. Quando terminamos, no final da tarde, de reorganizar o pequeno açude ele se tornara de novo um córrego com margens enlameadas cobertas por arbustos em algumas partes até as pedras amontoadas aleatoriamente no leito do córrego formava pequenas corredeiras e podia se ouvir o som da água escorrendo.

Voltamos para casa acompanhando o pequeno filete de água do córrego que renascera após nosso trabalho. Marcamos alguns pontos onde deveríamos fazer alguns ajustes pensando em nosso objetivo maior que era fazer um tanque para reservatório de água que abasteceria a casa por gravidade. Chegando em casa Marcelo lavou-se rapidamente e pegando Mara pelas mãos e foram contemplar o trabalho realizado. Eu fui para minha clareira treinar. Quando me banhava a baldadas após o treino pude observar o casal voltando andando ao ritmo do cair lento da noite que chegava a leste sob a luz do sol poente a oeste.

Noite

Cada lugar é um único e indiscutível espaço-tempo. Pois um lugar qualquer não existe independente do tempo. Pode ser numa esquina contemplando a lua a percorrer o vão vertical formado por dois prédios ou as lágrimas de alguém que chora. Pode ser, ainda, a estupidez de alguém que acredita em alguma coisa que não existe ou que seja pouco provável que exista. Não necessariamente o ponto de partida, encontro ou retorno. Simplesmente uma dimensão aberta entre um gotejar constante e o som produzido por ele. Em meio a estes pensamentos encontrava-me parado sendo escorado pelo muro. Ao lado da barulheira habitual de um bar agitado numa noite de sábado ou domingo, ou terça, nunca segunda. Olhares se encontravam procurando o fundo e eu espreitava aperfeiçoando a arte. Manipulava sem manipular, sem fazer, acertando ao acaso ou não.

Visto que as pessoas me desconheciam, não tive dificuldade em me fazer inútil, por não dizer nulo, invisível, ou, ainda, insignificantemente desconsiderável, descartável. Certo dia, por não ter o que fazer entrei em uma fila e comprei uma passagem para não sabia onde. Chegando àquele lugar, por tentar esquecer meu nome, escolhi um dos tantos bares que se espalhavam ao redor da praça, peregrinação alcoólica. Escolhi uma mesa no canto e comecei. Intoxiquei-me mantendo o controle e deixando os pensamentos fluírem à velocidade própria.

Percebi as mutações constantes do pensar a cada instante porque as mudanças eram constantemente verificadas nas coisas, fatos ou pensamentos. E imaginava o que significava cada olhar, gesto, belo ou não que não fosse meu. Não justifiquei ou mistifiquei, observei apenas o que ocorria e tentei compreende-lo assim, sem críticas, mostrando-me sereno, compenetrado. Os anseios, desejos, quereres se perdiam a cada passo que dava, pensava. Não percebia que na realidade aumentavam com o crescente desinteresse. Assim não percebi quando me tornei objeto desses anseios, desejos, quereres, deixando de ser o sujeito da ação.