ARCEBURGO - 9
– 20/07/85 –
Dia
Acordamos cedo, como sempre, e repetimos o ritual diário anterior ao café da manhã. Fui até o curral pegar o leite e encontrei o casal de corujas que me acompanhava todas as manhãs enquanto passava próximo a seu ninho. Cruzavam meu caminho com seus vôos rasantes para se tornar evidentes. Pousavam nos mourões e ficavam me olhando enquanto suas cabeças faziam agressivos movimentos para cima e para baixo. Voltei com o leite e fui ajudar Marcelo a regar as mudas de árvores frutíferas do pomar que começavam a verdejar crescendo, folha por folha, sob nossos olhares. Mara arrumava as coisas para a ida à cidade daquele dia escrevendo uma longa lista de mantimentos e outras coisas que precisaríamos. Após o café partimos para a cidade o Marcelo e eu.
O acontecimento me excitava a ponto de provocar uma leve taquicardia. A adrenalina que circulava em meu sangue deixava meus sentidos expandidos resultando em uma nova percepção da realidade, mais áspera, mais presente. As coisas habituais se tornaram novas, como se as visse pela primeira vez. A cada toque uma nova textura conhecida, a cada odor um novo aroma desconhecido. Aprofundava-me nas sensações perdendo a noção do que estava fazendo, a tal ponto que parecia distraído embora estivesse profundamente concentrado na percepção das novas sensações.
Nosso principal objetivo naquele dia era comprar tijolos e cimento para fazer o tanque de água e a mangueira que iríamos estender da nascente até o tanque e do tanque à casa. Quando chegamos a loja ainda estava fechada. Decidimos ir até um bar onde pude saborear um sanduíche de carne com um ovo frito nas primeiras horas da manhã. Tomamos alguns cafés e contemplamos as pessoas que iniciavam seu dia sem pressa. A loja abriu e compramos a metragem calculada de mangueira, dois milheiros de tijolos e o cimento necessários. Começamos então a carregar os tijolos na caçamba da perua. Inicialmente desajeitados eu jogava três tijolos amontoados por vez para Marcelo que estava na caçamba. Conforme os movimentos se tornavam mais naturais fui aumentando até jogar uma pilha de cinco tijolos por vez. Nossos dedos se esfolavam desacostumados aos movimentos. Os tijolos iam, pouco a pouco, retirando pequenos pedaços de pele de mossas mãos, feriam nossos dedos prensando-os. Mesmo assim não parávamos tamanha era nossa concentração e determinação em cumprir a tarefa do dia. Não lembro quanto tempo levamos para encher a caçamba, mas no final da tarefa lembro-me que o sol ia alto no céu e nossos corpos estavam avermelhados pelo pó dos tijolos que se grudara no suor. Além das roupas, nossos rostos apresentavam uma máscara avermelhada. Colocamos o cimento encima dos tijolos e a mangueira por cima de tudo, amarramos um encerado cobrindo o material e saímos da loja para fazer uma leve refeição antes de recomeçar a viagem de volta para o sítio.
A perua carregada se deslocava lenta devido ao peso, soubemos nos primeiros metros que a viagem seria longa apesar da pequena distância. Após os três primeiro quilômetros o radiador da perua ferveu e tivemos que parar. Conseguimos água e resfriamos o radiador após quase uma hora. Retomamos a viagem que se tornou interminável, pois parávamos sempre a cada três ou quatro quilômetros impedidos de avançar pelo teimoso radiador. O calor e o cansaço me faziam cochilar quando rodávamos lentamente pela estrada, a maior parte do tempo pelo acostamento para não atrapalhar o tráfego. Mais lento se tornou nosso deslocamento quando saímos da estrada principal, asfaltada e entramos na estrada secundária de terra batida.
Chegamos à casa onde Mara nos esperava atarefada próximo ao fim de nossa habitual jornada de trabalho. Tomamos um café rápido e começamos a descarregar os tijolos ao lado do córrego onde faríamos o tanque. Quando terminamos o sol já se punha e a noite se aproximava. Voltamos até a casa, guardamos a mangueira e naquele dia não treinei devido ao cansaço, fui direto para meu banho de balde enquanto Marcelo namorava Mara à porta da cozinha contemplando meu ritual e o sol que se punha.
Noite
Abriu-se a porta apara algum lugar indefinível, por não conhecer seu tempo não sei quanto tempo permaneci. Sei que nos reunimos ao redor de uma mesa iluminada por velas e a conversa versava sobre os acontecimentos que se passaram em dias distantes. A expectativa de algo novo aumentava a cada palavra, aumentava também a agitação das chamas das velas embora o óleo permanece-se inalterado. Fez-se, então, à minha direita, um muro um tanto quanto penetrável e à esquerda, uma névoa amarelo esverdeada que convidava à exploração do desconhecido. Fez-se noite em pleno dia sem prenúncio ou explicação.
A partir daquele ponto, tudo pareceu não mais se encaixar na imperturbável ordem que regia o universo estático de nossas opiniões. Relembrando reafirmávamos nossa realidade, consolidando-a a cada detalhe acrescentado, reconstruíamos assim nosso universo presente a partir de um novo passado. Histórias pessoais repetidas e entrelaçadas. Caminho único para frente sempre à frente. Mergulhávamos na mediocridade inata que aceitávamos com a estupidez sincrônica de cada dia.
Dia
Acordamos cedo, como sempre, e repetimos o ritual diário anterior ao café da manhã. Fui até o curral pegar o leite e encontrei o casal de corujas que me acompanhava todas as manhãs enquanto passava próximo a seu ninho. Cruzavam meu caminho com seus vôos rasantes para se tornar evidentes. Pousavam nos mourões e ficavam me olhando enquanto suas cabeças faziam agressivos movimentos para cima e para baixo. Voltei com o leite e fui ajudar Marcelo a regar as mudas de árvores frutíferas do pomar que começavam a verdejar crescendo, folha por folha, sob nossos olhares. Mara arrumava as coisas para a ida à cidade daquele dia escrevendo uma longa lista de mantimentos e outras coisas que precisaríamos. Após o café partimos para a cidade o Marcelo e eu.
O acontecimento me excitava a ponto de provocar uma leve taquicardia. A adrenalina que circulava em meu sangue deixava meus sentidos expandidos resultando em uma nova percepção da realidade, mais áspera, mais presente. As coisas habituais se tornaram novas, como se as visse pela primeira vez. A cada toque uma nova textura conhecida, a cada odor um novo aroma desconhecido. Aprofundava-me nas sensações perdendo a noção do que estava fazendo, a tal ponto que parecia distraído embora estivesse profundamente concentrado na percepção das novas sensações.
Nosso principal objetivo naquele dia era comprar tijolos e cimento para fazer o tanque de água e a mangueira que iríamos estender da nascente até o tanque e do tanque à casa. Quando chegamos a loja ainda estava fechada. Decidimos ir até um bar onde pude saborear um sanduíche de carne com um ovo frito nas primeiras horas da manhã. Tomamos alguns cafés e contemplamos as pessoas que iniciavam seu dia sem pressa. A loja abriu e compramos a metragem calculada de mangueira, dois milheiros de tijolos e o cimento necessários. Começamos então a carregar os tijolos na caçamba da perua. Inicialmente desajeitados eu jogava três tijolos amontoados por vez para Marcelo que estava na caçamba. Conforme os movimentos se tornavam mais naturais fui aumentando até jogar uma pilha de cinco tijolos por vez. Nossos dedos se esfolavam desacostumados aos movimentos. Os tijolos iam, pouco a pouco, retirando pequenos pedaços de pele de mossas mãos, feriam nossos dedos prensando-os. Mesmo assim não parávamos tamanha era nossa concentração e determinação em cumprir a tarefa do dia. Não lembro quanto tempo levamos para encher a caçamba, mas no final da tarefa lembro-me que o sol ia alto no céu e nossos corpos estavam avermelhados pelo pó dos tijolos que se grudara no suor. Além das roupas, nossos rostos apresentavam uma máscara avermelhada. Colocamos o cimento encima dos tijolos e a mangueira por cima de tudo, amarramos um encerado cobrindo o material e saímos da loja para fazer uma leve refeição antes de recomeçar a viagem de volta para o sítio.
A perua carregada se deslocava lenta devido ao peso, soubemos nos primeiros metros que a viagem seria longa apesar da pequena distância. Após os três primeiro quilômetros o radiador da perua ferveu e tivemos que parar. Conseguimos água e resfriamos o radiador após quase uma hora. Retomamos a viagem que se tornou interminável, pois parávamos sempre a cada três ou quatro quilômetros impedidos de avançar pelo teimoso radiador. O calor e o cansaço me faziam cochilar quando rodávamos lentamente pela estrada, a maior parte do tempo pelo acostamento para não atrapalhar o tráfego. Mais lento se tornou nosso deslocamento quando saímos da estrada principal, asfaltada e entramos na estrada secundária de terra batida.
Chegamos à casa onde Mara nos esperava atarefada próximo ao fim de nossa habitual jornada de trabalho. Tomamos um café rápido e começamos a descarregar os tijolos ao lado do córrego onde faríamos o tanque. Quando terminamos o sol já se punha e a noite se aproximava. Voltamos até a casa, guardamos a mangueira e naquele dia não treinei devido ao cansaço, fui direto para meu banho de balde enquanto Marcelo namorava Mara à porta da cozinha contemplando meu ritual e o sol que se punha.
Noite
Abriu-se a porta apara algum lugar indefinível, por não conhecer seu tempo não sei quanto tempo permaneci. Sei que nos reunimos ao redor de uma mesa iluminada por velas e a conversa versava sobre os acontecimentos que se passaram em dias distantes. A expectativa de algo novo aumentava a cada palavra, aumentava também a agitação das chamas das velas embora o óleo permanece-se inalterado. Fez-se, então, à minha direita, um muro um tanto quanto penetrável e à esquerda, uma névoa amarelo esverdeada que convidava à exploração do desconhecido. Fez-se noite em pleno dia sem prenúncio ou explicação.
A partir daquele ponto, tudo pareceu não mais se encaixar na imperturbável ordem que regia o universo estático de nossas opiniões. Relembrando reafirmávamos nossa realidade, consolidando-a a cada detalhe acrescentado, reconstruíamos assim nosso universo presente a partir de um novo passado. Histórias pessoais repetidas e entrelaçadas. Caminho único para frente sempre à frente. Mergulhávamos na mediocridade inata que aceitávamos com a estupidez sincrônica de cada dia.


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