domingo, março 19, 2006

ARCEBURGO - 14

– 25/0785 –

Dia

Mais uma manhã de vida no campo. Uma nova tarefa me esperava nesse dia. Deveria revirar o material da composteira. Enterrei-me logo cedo na pilha de estrume misturada aos restos de nossa comida. Senti o calor que exalava a mistura que era atacada por microorganismos que fariam o trabalho de converter a matéria orgânica em ácidos húmicos e sais minerais. O calor que o composto irradiava contrastava com a manhã fria coberta pela neblina espessa, que nesse dia demorava a se dissipar. Acreditei, por ignorância que mais tarde choveria. Completei meu trabalho e fui ajudar Marcelo a regar as mudas. Agora o trabalho era facilitado, pois enquanto ele e o pai de Mara enchiam seus baldes na água corrente eu o fazia lançando outro balde ao poço. Assim terminamos mais cedo e pudemos demorar um pouco mais no café da amanhã.

Saímos então para encarar novamente o barranco. Desgastamos suas paredes que agora assumiam um formato retangular. Esculpíamos a terra que em breve violaríamos com tijolos e cimento. Eu amontoava a terra cada vez mais alto ao lado do poço. O contraste da terra contra o céu era maior neste dia, pois as nuvens o cobriam tornado-o mais pálido. Meu corpo se movia como que impelido por um mantra místico. Sentia cada músculo, sentia cada articulação em meu movimento pendular. Não parava nem para enxugar o suor que se misturava à terra que grudava em meu rosto traçando uma máscara ritual. A camiseta há muito pendurada em um arbusto. Meu torso adquiria linhas desenhadas pela terra que acompanhava a drenagem do suor.

Marcelo e o pai de Mara trabalhavam meticulosamente calculando e medindo cada movimento posterior que fariam cortando o barranco. O formato retangular se completara, começaram então a calcular a profundidade. A um canto Marcelo cavou furiosamente fazendo um pequeno retângulo. Considerando a inclinação do terreno cavou outro no lado oposto de profundidade diferente. Essa seria a medida que teríamos que completar entre os dois pontos adequando a inclinação. Naquele dia não voltamos para almoçar. O pai de Mara foi até a casa e com ajuda dela nos trouxe o almoço do dia. Almoçamos debaixo da sombra fresca das árvores mais próximas saboreando a comida e a paisagem em uníssono. Comíamos e suspirávamos satisfeitos. Em seguida nos esticamos cada um em seu canto e dormitamos por alguns minutos até sentir que cairíamos em sono profundo. Levantamos com ímpeto redobrado, mais para não sucumbir ao sono do que para continuar a trabalhar. Voltamos a nosso rítmico trabalho mais uma vez. Assim o fizemos até o fim do dia. Repeti meu ritual diário do treino e do banho para encarar mais uma noite sem fim.

Noite

A noite podia ter horas altas e baixas, estas podiam ser longas ou curtas. No canto da sala, uma cadeira vazia, vazia ou não, cadeira. O canto na realidade um ângulo, acima e abaixo o vento que o tornava sólido. Se não muito sólido, a luz, quando não muito luz a brasa, ou, quem sabe, a madeira pálida a apodrecer no chão de uma sala há muito esquecida. Pentagrama místico de chão, sala, luz, canto e cadeira que se desloca para frente e para trás no eixo permanente de um tempo único, indo e voltando como as marés rítmicas que acompanham a Lua.

Sonhava sucessivamente, noite após noite, com uma casa chinesa e as pessoas que nela se encontravam. Algumas vezes cheguei a perceber que poderia não ser chinesa, mas tinha a certeza, única, de nunca ter pisado naquela terra. Encontrei o buraco azulado ao virar à esquerda na esquina de um longo corredor escuro, não me espantei, pois sabia que uma terra estranha tornava tudo possível. E aquele belo convento que virou sanatório e dali para outro. A vela queimando acima da rolha, acima do óleo, acima da água dentro do copo, acima da tábua que descansava encima da mesa sobre o chão da casa acima do solo acima da terra por sobre o planeta, nem abaixo nem acima de coisa alguma.

Máquina de fazer, fazer a máquina, desfazê-la. O crepitar da madeira em brasa, os pingos que passavam pelo filtro, a pena deslizando no papel e essa brisa constante que estremecia a chama e me perseguia atrás de alguém que chamava nas noites solitárias. Poucas linhas nada são ante si ou então não tão urgente, nem tanto assim. Não é questão de economia ou coisa assim, pode ser alguma coisa que está no fim, ou, ainda, o começo de algo que está por vir.

A formiga passeia atenta a tatear a mesa e esse livro que não parava de me chamar entre um mugido e outro, à vezes um latido. Corro os olhos por longas linhas filosóficas. Meus pensamentos saltitam como anuros em uma lagoa. Chegam, param um pouco, respiram, se preparam para o salto e se vão deixando lugar para outros. Quase ouço o roçar das patas da formiga que ainda anda enquanto leio e penso. Cansaço, hora de dormir.