ARCEBURGO -12
– 23/0785 –
Dia
Após nosso repetitivo ritual matutino de regar as mudas, pegar o leite no curral e tomar o café da manhã fomos até o córrego onde a mangueira nos esperava molhada. Naquele dia foi difícil começar a engrenar o trabalho, pois o frio nos afastava da água. Meia hora após começarmos o trabalho já andávamos na lama fria suando e retesando os músculos. Levamos toda a manhã e parte do início da tarde para levar a mangueira até a casa. Enquanto eu fixava a mangueira em um suporte ao lado da cozinha e preparava uma canaleta de escoamento Marcelo fora até a nascente para colocar a outra ponta na saída da água que brotava por baixo da rocha na nascente.
Eu estava terminando a canaleta, Mara arrumava o jardim e a casa alternadamente. Estávamos concentrados em nossos trabalhos quando um grito nos chamou a atenção. Marcelo corria e gritava como um louco descendo o morro. Corria, saltava e gritava sem parar. Fomos até a mangueira para espera-lo. Chegou triunfante e beijou Mara alçando-a do chão. Voltamo-nos para a mangueira esperando o fluxo de água. De repente ela começou a jorrar primeiro um pouco lamacenta, depois cristalina e fresca. Os reflexos dos raios do sol no filete de água nos hipnotizava. Ficamos ali parados em silêncio contemplando o fluxo ininterrupto de água, vendo como escorria pela primeira vez pela canaleta que eu escavara, carregando gravetos e pedaços de capim. Levando a terra solta em uma pequena onda que prometia nova vida.
Fui o primeiro a quebrar a contemplação colocando minha cabeça embaixo da água que jorrava quase gelada. Molhei a cabeça, bebi em grandes goles e joguei água neles. Nos abraçamos e festejamos mais um empreendimento que dava certo. Fomos descansar à porta da cozinha enquanto Mara acabava de preparar o almoço. Fumei um cigarro enquanto contemplava mais uma vez a paisagem que modificávamos com nosso trabalho.
Estávamos sentados contemplando quando chegou o “homem das vacas”. Inspecionou nossa nova obra, olhou a paisagem e cumprimentou-nos pelos trabalhos realizados. Desaprovou apenas nossa falta de conhecimento para melhorar o desenvolvimento das mudas frutíferas do pomar que regávamos todas as manhãs ao redor da casa. Disse que deveríamos fazer uma compostagem e adubar com ela as mudas. Ele forneceria o estrume de vaca necessário e nós poderíamos adicionar nosso lixo orgânico a ela. Depois deveríamos esperar que a mistura ficasse quente e somente então revirar para arejar, retirar um pouco e mistura-la à terra argilosa para fazer o solo orgânico. Tínhamos, portanto, mais um projeto a executar enquanto nos dedicávamos a dar continuidade a nossos objetivos.
Ficou combinado que no dia seguinte iríamos até o curral para pegar uma carga de estrume de vaca para iniciar nossa composteira. Separamos um encerado que serviria para tampar o composto e faze-lo fermentar, tomamos mais um café, fumei mais um cigarro e fomos até o leito do córrego onde faríamos a caixa de água nos próximos dias. O “homem das vacas” nos acompanhou a nosso pedido para dar sua opinião. Pegamos nossa ferramentas e fomos até lá caminhando despreocupadamente.
Chegamos à vala semiescavada em forma de caixa que cortava o leito do córrego e verificamos que o fluxo havia aumentado como resultado de nosso trabalho de retificação do leito do córrego e eliminação do açude das vacas a montante. Nos surpreendeu de que, apesar do desvio de parte da água para a casa o volume aumentasse dia a dia. Com uma trena e fio de pedreiro marcamos a área que deveria ter o tanque que serviria de reservatório. Calculamos a profundidade e o quanto teríamos que escavar e acertar o barranco.
Voltamos para a casa, tomamos outro café e Marcelo se preparou para ir à cidade para receber o pai de Mara que chegaria essa tarde para nos ajudar a fazer o tanque. Eu voltei para o poço e comecei a limpar o fundo para o trabalho que começaríamos no dia seguinte. Mara acompanhou Marcelo e o “homem das vacas” aproveitou a carona para ir à cidade. Era a primeira vez que ficava sozinho no sítio, mas não tive muito tempo para pensar a respeito. Concentrei-me no trabalho e não parei até que eles voltassem.
Quando chegaram faltava pouco para terminar a jornada de trabalho. O Pai de Mara inspecionou nosso trabalho, deu alguns conselhos e delineou o que teríamos que fazer nos próximos dias. Cada um de nós assumiu uma função, o Pai de Mara se encarregaria de manter o prumo e orientar Marcelo que acertaria o barranco retirando a terra, eu limparia o fundo retirando a terra com uma pá e colocando-a no solo ao lado do tanque. Quando chegamos à casa Mara ainda preparava o jantar. Fui fazer meus exercícios e depois repetir meu ritual de banho. O dia terminara.
Noite
Nessas noites de insônia quando a mente inquieta me levava e me trazia como as ondas de um mar tirano que se deixa levar pela força da lua, só mesmo uns cigarros e a luz solitária do quarto me acompanhava. A música vinda do rádio parecia se adequar ao que sentia, por isso geralmente preferia o rádio a um disco. Gostava da surpresa, da satisfação de ouvir aquela música que meu espírito ansiava e o programador acertava, gostava da decepção e da ira quando o programador errava e toca aquela música que tanto detestava. Por mais previsível que fosse a programação sempre havia uma surpresa, sempre podia contar com o inesperado.
Como no dia a dia quando planejava minha vida e algo inesperado me mostrava que a realidade não se importava com aquilo que pensava ou queria. Nesses momentos, assim como nos momentos de insônia, procurava identificar para onde o fluxo ia e aproveitava sua força para me lançar delirante ao que me era oferecido. Ou, caso não quisesse, utilizava a força do fluxo para me impulsionar em outra direção canalizando a energia represada para ouro lugar e tempo.
Quando fazia isso nas noites de insônia, nas raras noites de insônia, sabia que estava no espaço-tempo correto quando aos poucos sentia o suor a sair lento pelos poros das glândulas e a escorrer suavemente pela pele. Sabia que estava vivo e que devia ir em frente, pensava que, enquanto os outros dormiam, eu me aprimorava. Não havia inimigo que resistisse a tanta determinação, a um propósito inflexível, a uma intenção absoluta. Por isso mergulhava no turbilhão de pensamentos que vertiginosos povoavam minha mente doentia e me entregava a cada um deles como se fossem bolhas de sabão arrebentando com uma suave brisa.
Deixava que a febre de minha insanidade controlada aumentasse e distorcesse a realidade cotidiana transportando-me a outras dimensões simultaneamente paralelas. Nesses momentos tinha consciência de cada partícula de meu ser e as depurava deleitando-me com a consciência de ser que me fazia humano.
Ah! Essas noites de insônia. Como as detestava! Como as precisava! Era a partir delas que rearranjava meus objetivos, refazia meus planos, procurava as estrelas e ficava atento à lua. Era a partir delas que novos ciclos se iniciavam e eu me preparava para um novo salto. Sempre os mesmo ciclos com repetição exata, nunca os mesmos fatos, sempre um salto irreversível para algum espaço-tempo diferente. Depois de tudo depurado, analisado e conscientizado me vinha o sono leve que me levaria para outro mundo, tão vivo quanto este, ia a meus sonhos, acabava a insônia.
Após nosso repetitivo ritual matutino de regar as mudas, pegar o leite no curral e tomar o café da manhã fomos até o córrego onde a mangueira nos esperava molhada. Naquele dia foi difícil começar a engrenar o trabalho, pois o frio nos afastava da água. Meia hora após começarmos o trabalho já andávamos na lama fria suando e retesando os músculos. Levamos toda a manhã e parte do início da tarde para levar a mangueira até a casa. Enquanto eu fixava a mangueira em um suporte ao lado da cozinha e preparava uma canaleta de escoamento Marcelo fora até a nascente para colocar a outra ponta na saída da água que brotava por baixo da rocha na nascente.
Eu estava terminando a canaleta, Mara arrumava o jardim e a casa alternadamente. Estávamos concentrados em nossos trabalhos quando um grito nos chamou a atenção. Marcelo corria e gritava como um louco descendo o morro. Corria, saltava e gritava sem parar. Fomos até a mangueira para espera-lo. Chegou triunfante e beijou Mara alçando-a do chão. Voltamo-nos para a mangueira esperando o fluxo de água. De repente ela começou a jorrar primeiro um pouco lamacenta, depois cristalina e fresca. Os reflexos dos raios do sol no filete de água nos hipnotizava. Ficamos ali parados em silêncio contemplando o fluxo ininterrupto de água, vendo como escorria pela primeira vez pela canaleta que eu escavara, carregando gravetos e pedaços de capim. Levando a terra solta em uma pequena onda que prometia nova vida.
Fui o primeiro a quebrar a contemplação colocando minha cabeça embaixo da água que jorrava quase gelada. Molhei a cabeça, bebi em grandes goles e joguei água neles. Nos abraçamos e festejamos mais um empreendimento que dava certo. Fomos descansar à porta da cozinha enquanto Mara acabava de preparar o almoço. Fumei um cigarro enquanto contemplava mais uma vez a paisagem que modificávamos com nosso trabalho.
Estávamos sentados contemplando quando chegou o “homem das vacas”. Inspecionou nossa nova obra, olhou a paisagem e cumprimentou-nos pelos trabalhos realizados. Desaprovou apenas nossa falta de conhecimento para melhorar o desenvolvimento das mudas frutíferas do pomar que regávamos todas as manhãs ao redor da casa. Disse que deveríamos fazer uma compostagem e adubar com ela as mudas. Ele forneceria o estrume de vaca necessário e nós poderíamos adicionar nosso lixo orgânico a ela. Depois deveríamos esperar que a mistura ficasse quente e somente então revirar para arejar, retirar um pouco e mistura-la à terra argilosa para fazer o solo orgânico. Tínhamos, portanto, mais um projeto a executar enquanto nos dedicávamos a dar continuidade a nossos objetivos.
Ficou combinado que no dia seguinte iríamos até o curral para pegar uma carga de estrume de vaca para iniciar nossa composteira. Separamos um encerado que serviria para tampar o composto e faze-lo fermentar, tomamos mais um café, fumei mais um cigarro e fomos até o leito do córrego onde faríamos a caixa de água nos próximos dias. O “homem das vacas” nos acompanhou a nosso pedido para dar sua opinião. Pegamos nossa ferramentas e fomos até lá caminhando despreocupadamente.
Chegamos à vala semiescavada em forma de caixa que cortava o leito do córrego e verificamos que o fluxo havia aumentado como resultado de nosso trabalho de retificação do leito do córrego e eliminação do açude das vacas a montante. Nos surpreendeu de que, apesar do desvio de parte da água para a casa o volume aumentasse dia a dia. Com uma trena e fio de pedreiro marcamos a área que deveria ter o tanque que serviria de reservatório. Calculamos a profundidade e o quanto teríamos que escavar e acertar o barranco.
Voltamos para a casa, tomamos outro café e Marcelo se preparou para ir à cidade para receber o pai de Mara que chegaria essa tarde para nos ajudar a fazer o tanque. Eu voltei para o poço e comecei a limpar o fundo para o trabalho que começaríamos no dia seguinte. Mara acompanhou Marcelo e o “homem das vacas” aproveitou a carona para ir à cidade. Era a primeira vez que ficava sozinho no sítio, mas não tive muito tempo para pensar a respeito. Concentrei-me no trabalho e não parei até que eles voltassem.
Quando chegaram faltava pouco para terminar a jornada de trabalho. O Pai de Mara inspecionou nosso trabalho, deu alguns conselhos e delineou o que teríamos que fazer nos próximos dias. Cada um de nós assumiu uma função, o Pai de Mara se encarregaria de manter o prumo e orientar Marcelo que acertaria o barranco retirando a terra, eu limparia o fundo retirando a terra com uma pá e colocando-a no solo ao lado do tanque. Quando chegamos à casa Mara ainda preparava o jantar. Fui fazer meus exercícios e depois repetir meu ritual de banho. O dia terminara.
Noite
Nessas noites de insônia quando a mente inquieta me levava e me trazia como as ondas de um mar tirano que se deixa levar pela força da lua, só mesmo uns cigarros e a luz solitária do quarto me acompanhava. A música vinda do rádio parecia se adequar ao que sentia, por isso geralmente preferia o rádio a um disco. Gostava da surpresa, da satisfação de ouvir aquela música que meu espírito ansiava e o programador acertava, gostava da decepção e da ira quando o programador errava e toca aquela música que tanto detestava. Por mais previsível que fosse a programação sempre havia uma surpresa, sempre podia contar com o inesperado.
Como no dia a dia quando planejava minha vida e algo inesperado me mostrava que a realidade não se importava com aquilo que pensava ou queria. Nesses momentos, assim como nos momentos de insônia, procurava identificar para onde o fluxo ia e aproveitava sua força para me lançar delirante ao que me era oferecido. Ou, caso não quisesse, utilizava a força do fluxo para me impulsionar em outra direção canalizando a energia represada para ouro lugar e tempo.
Quando fazia isso nas noites de insônia, nas raras noites de insônia, sabia que estava no espaço-tempo correto quando aos poucos sentia o suor a sair lento pelos poros das glândulas e a escorrer suavemente pela pele. Sabia que estava vivo e que devia ir em frente, pensava que, enquanto os outros dormiam, eu me aprimorava. Não havia inimigo que resistisse a tanta determinação, a um propósito inflexível, a uma intenção absoluta. Por isso mergulhava no turbilhão de pensamentos que vertiginosos povoavam minha mente doentia e me entregava a cada um deles como se fossem bolhas de sabão arrebentando com uma suave brisa.
Deixava que a febre de minha insanidade controlada aumentasse e distorcesse a realidade cotidiana transportando-me a outras dimensões simultaneamente paralelas. Nesses momentos tinha consciência de cada partícula de meu ser e as depurava deleitando-me com a consciência de ser que me fazia humano.
Ah! Essas noites de insônia. Como as detestava! Como as precisava! Era a partir delas que rearranjava meus objetivos, refazia meus planos, procurava as estrelas e ficava atento à lua. Era a partir delas que novos ciclos se iniciavam e eu me preparava para um novo salto. Sempre os mesmo ciclos com repetição exata, nunca os mesmos fatos, sempre um salto irreversível para algum espaço-tempo diferente. Depois de tudo depurado, analisado e conscientizado me vinha o sono leve que me levaria para outro mundo, tão vivo quanto este, ia a meus sonhos, acabava a insônia.


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