URBE - 2
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A cada rua um traço, a cada cruzamento um ponto, vários pontos uma cidade. Eletricidade e luzes hipnóticas. Pessoas que viviam, pessoas que habitavam. E a impossibilidade de uma vida normal, de uma vida natural, de crescimento e contentamento. Olhei para a planta, vi a borboleta que sugava pacientemente o néctar de suas flores. Os fluídos da natureza me envolviam na grande cidade. Não me lembrava de tudo o que aprendera. Quando ensinei procurei transmitir minha visão do mundo que nos cercava, mostrava outra realidade. Uma realidade paralela àquela aparente, uma realidade diferente do que podiam pensar oficialmente. Uma realidade que não dependia do partido político, de ser politicamente correto, não dependia da religião, classe social ou etnia. Uma realidade com seu próprio tempo, diferente do tempo de nossa sociedade.
Inserido nessa sociedade percebi a inutilidade de fazer o que quer que fosse sem ter em mente o resultado final. Abracei a falta de ambição a cada ato produtivo praticado, mantive minha grande farsa, não desisti. Procurei não desvendar nada e ignorar tudo o possível, descobrindo os componentes da natureza um a um nas entrelinhas do que nos impunham como realidade. Atingi, assim, a total ignorância, tornei-me um alienado para a sociedade. Com grande esforço e autodisciplina não me deixei padronizar por comportamentos adquiridos, soube o instante de retornar e desfazer os comportamentos adquiridos. Embriaguei-me com o vinho do fluir dos homens na grande cidade, seus passos, suas palavras, seus atos.
Acostumei-me aos desencontros propositais, à insatisfação e ao desprazer. Nos ensolarados dias as aves metálicas não cruzavam mais o céu, ou se o faziam era raro. Sons agudos perturbavam insistentemente minha mente. Uma mão se elevou cortando o ar a minha frente e tocou a carne com violência. O sangue jorrou quente e doce. Lágrimas e a ira e o grito contidos.
Não compartilhei meus pensamentos com ninguém, não tinha cúmplices ou associados em minha empreitada. Por medo e paranóia, evitei me expor à crítica, tornei-me agressivo e radical. Vivia em total confusão mental apresentando espasmos de descoordenação corporal e calafrios modais. O redemoinho interior sugou meu ser para o infinito. Paredes de vidro me cercavam, algumas folhas secas caíam e a tela fina e resistente que não permitia a saída, apenas respirar. Portas batendo, sons que me levavam de volta à realidade. A música se espalhando e o trepidar do pequeno compressor do aquário, sua presença próxima sem perturbar o ambiente.
Fugi para longe, evitei o contato com qualquer um. Não me aproximei de ninguém, não ouvi por querer me manter isolado. Um grito e minha corrida para a janela, meu olhar percorrendo a rua que se estendia abaixo para um lado e para outro. Ative-me a conceitos estabelecidos buscando a liberdade onde ela não existia. Em minha vida uns vinham e voltavam raramente, havia os que ficavam de forma permanente, outros nem sabiam de minha existência. Tentei lembrar com pormenores os sentimentos que voltavam à tona. Ri ridicularizando-me.
Observando a natureza intuí que as espécies e seus planos não se misturam, que há infinitos planos para cada espécie. Há, no entanto um plano que define a espécie tornando-a una. A maçã prestes a ser mordida não apresentava cor definida, mas me atraía prometendo conhecimento e saciedade. As correntes energéticas entrelaçavam-se e retinham o absurdo dos seres vivos no universo da matéria. Contra-mão energética organizando a energia desorganizada que emanava desse universo.
Parado frente à mesa hierárquica vi meu superior ameaçador olhando-me com insatisfação. A parede atrás de sua mesa portava dois quadros de navios cortando o azul do mar. E meu chefe começou a falar. Não vi senão o mar. Suas ondas tornavam-se mais calmas à medida que o navio se afastava, algumas gaivotas voavam displicentes, ouvi seus grasnidos. E meu chefe continuava a falar. O odor salino invadia-me as narinas confundindo-se com o suor doce que me escorria pelo rosto. E meu chefe percebeu que eu não o ouvia.
Entrando pelo estomago a voz autoritária de meu chefe trouxe-me lentamente de volta ao escritório, chamou-me à realidade. A parede dos quadros ainda ondulava quando voltei totalmente. O chefe nem tivera conhecimento de minha viagem, nossos universos sem dúvida não eram os mesmos, mas agora eu entendia que ele reclamava e me repreendia por um erro cometido. Pensei em perguntar-lhe se ele nunca tivera cometido algum erro em sua vida, mas achei que seria o suficiente para ele estourar de raiva, calei-me, mais uma vez, calei-me.
Depois do expediente entrei no ônibus distraidamente e desordenadamente, atrapalhando-me com as notas e moedas, paguei a passagem. Gritei e não ouvi. Pensei nas armas floridas tatuadas, nas mentes trituradas. Discuti com alguém a leveza do grande pássaro metálico, admirei seu rastro de destruição. A dor me fez relembrar as contrações. Quimiossintetizei, biodegradei e explorei exaustivamente o ambiente que me cercava para me manter.
As tradições atraíram os velhos e cansados de espírito com sua superficialidade, com sua clareza e seus incontestáveis dogmas. Destruí todas as imposições conceituais ao fim da noite e reiniciei sua reconstrução nas primeiras horas do novo dia. O uso excessivo da razão, não tão lógica quanto parecia. Vi no televisor quando o vendaval atingiu o auge e a destruição por ele provocada foi desoladora e maravilhosa. As ruínas e a agonia dos semelhantes. Perplexidade, horror e a angústia que persistia. Palavras que não paravam de fluir em absurda velocidade e simetria. A brasa na escuridão não iluminava o ambiente, mas o odor das ervas queimadas era perceptível.
A confusão mental imperou naquela manhã quando me pressionaram exigindo que tomasse uma atitude final. Sabia que estaria sujeito a mais uma frustração, somente mais uma, pensara. Caso contrário não pareceria economicamente viável. E mais uma vez o imprevisível eliminou, repentinamente, a pressão. A discórdia que levara a uma guerra em algum canto perdido do planeta me salvara. Preços subindo, produtos faltando. Lamentos pelas vítimas, sempre inocentes vítimas que insistiam em ser vítimas, que insistiam em morrer.
Voltei ao passado e relembrei minha vida vulgar, percebi que não me libertara. Naquele dia não cumpri nenhum compromisso, decretei um momento de parar o mundo em mim, apenas parar e não produzir. Desintegrei-me em meio às vozes companheiras não diferenciando sonho e realidade, deixei de sonhar por um tempo. Distrai-me com o vôo do pardal cruzando o céu da cidade, seu ninho no peitoril da janela, feito de fios e pedras. O peso se liquefez penetrando nas fendas do ser e se integrou às paredes do prédio encardido.


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