ARCEBURGO - 19 (FINAL)
– 02/08/85 –
Dia
Acordamos pela última vez com as vacas sendo recolhidas do pasto. Arrumamos as últimas coisas e as levamos para a perua. Estávamos prontos para retornar à cidade grande. Tomamos um café rápido e passamos pelo curral para um último gole de leite e a despedida final do “homem das vacas”. As estrelas ainda brilhavam no céu noturno, os odores pareciam ressaltados e nos atingiam como algo sólido naquela manhã.
Passamos pelas porteiras ainda na escuridão, a perua carregada rangia ao passarmos nas valetas e buracos do caminho. O esforço do motor se fazia sentir nos tremores da estrutura. O odor do óleo diesel queimado em excesso nos chegava em golfadas trazidas pelo vento que se deslocava mais rápido que nós. Ganhamos a primeira estrada secundária de terra, depois de uma parada obrigatória para resfriar o motor, chegamos à estrada principal que nos levaria para Sampa.
Marcelo aproveitava cada descida para resfriar o motor. Quando acelerava o fazia dentro de um limite que nos permitia rodar alguns quilômetros sem parar. Mas paramos infinitas vezes, parecia que nunca deixaríamos de parar. Tínhamos a impressão de que iríamos parando cada vez mais sem nunca podermos chegar a nosso destino.
Cada parada era um ritual de resfriamento, procurávamos água nas redondezas e resfriávamos o motor que parecia prestes a se fundir em uma única massa sólida descaracterizando as partes a qualquer momento. Nossos corpos doloridos pela viagem estavam cobertos pela fuligem da fumaça de óleo diesel e pela fuligem do asfalto que subia da estrada quando os carros e caminhões passavam por nós zunindo, indo e vindo.
Passáramos um mês, aproximadamente, em total contato com os ciclos da natureza, longe da modernidade da vida na grande cidade. A interminável viagem prosseguia lenta, quente, paciente. Rodávamos para frente, mas não nos preocupávamos com a demora excessiva da viagem. Parecia que a perua, assim como nós, relutava em voltar à grande cidade.
Conforme nos aproximávamos crescia em nós a expectativa do que nos esperava. Parecia que estávamos chegando a um mundo novo. Um mundo misterioso e ameaçador, mas maravilhosamente diverso e fascinante. Nos sentíamos como refugiados chegando de uma terra distante. Sentido a expectativa da vida nova aberta a todas as possibilidades. Quando fizemos uma das últimas curvas e a cidade grande se ergueu a nossa frente como uma misteriosa muralha, contivemos a respiração. Matheus parou a perua sem necessidade. Eu senti uma forte taquicardia sob o peito, na verdade todo meu corpo tremia de emoção, desenfreada emoção. O mesmo acontecia com Marcelo e Mara ao meu lado. Eles se abraçaram procurando apoio mútuo.
Marcelo religou o motor e nos arrastamos lentamente para cidade. Fomos até a casa de Mara através de tortuosas ruas. Descarregamos suas coisas e a deixamos lá. Dali fomos para a casa de Marcelo onde descarregamos as demais coisas. Peguei minha mochila, me despedi e fui até o metrô para realizar a última etapa de minha parte da viagem, queria chegar em casa. Parei algumas estações antes e decidi fazer o resto do caminho a pé para reconstruir em minha mente a cidade que deixara para trás há um mês. Como estava diferente. Caminhei até anoitecer e decidi tomar o rumo de casa. Passei pela porta da frente e tudo parecia então uma noite distante em que sonhara embalado por uma febre constante. Sonho delirante de uma noite de inverno febril.
Noite
Turbilhão de expectativas, novos horizontes, novas perspectivas. Minha mente saltitava em pensamentos como se o fizesse nas espirais da fumaça de meu cigarro abandonado no cinzeiro. Noite de inverno, final de inverno. Há dois dias fizera calor de verão superando a primavera, nesta noite novamente o frio de inverno. Aquele frio com vento gelado que convida as pessoas a se recolherem mais cedo, que convida as pessoas a compartilharem seu calor abraçando seus corpos. Aquelas noites que nos lembramos do leito materno procurando seu afeto.
Meus olhos correm das revolutas curvas das letras do texto que leio para as espiraladas curvas da fumaça que sobe. Sinto o vento a correr lá fora solitário, onipresente, dominando a cidade escura. Poucos carros circulam, nem as prostitutas trabalham essa noite.
Salto quântico para o futuro, salto quântico para o passado, dobras temporais, vermes cósmicos e fissuras dimensionais fragmentam meu pensamento. Ainda procuro os padrões que se desenham na vida que se espalha pelo planeta a minha volta. Mais uma noite, mais uma noite após o banho de balde retirando água no poço imaginário de meu passado onde contemplo a paisagem que se estende ante meus olhos no entardecer de algum ponto de uma estrada que vai e vem e me leva para a porta dos mundos.
Dia
Acordamos pela última vez com as vacas sendo recolhidas do pasto. Arrumamos as últimas coisas e as levamos para a perua. Estávamos prontos para retornar à cidade grande. Tomamos um café rápido e passamos pelo curral para um último gole de leite e a despedida final do “homem das vacas”. As estrelas ainda brilhavam no céu noturno, os odores pareciam ressaltados e nos atingiam como algo sólido naquela manhã.
Passamos pelas porteiras ainda na escuridão, a perua carregada rangia ao passarmos nas valetas e buracos do caminho. O esforço do motor se fazia sentir nos tremores da estrutura. O odor do óleo diesel queimado em excesso nos chegava em golfadas trazidas pelo vento que se deslocava mais rápido que nós. Ganhamos a primeira estrada secundária de terra, depois de uma parada obrigatória para resfriar o motor, chegamos à estrada principal que nos levaria para Sampa.
Marcelo aproveitava cada descida para resfriar o motor. Quando acelerava o fazia dentro de um limite que nos permitia rodar alguns quilômetros sem parar. Mas paramos infinitas vezes, parecia que nunca deixaríamos de parar. Tínhamos a impressão de que iríamos parando cada vez mais sem nunca podermos chegar a nosso destino.
Cada parada era um ritual de resfriamento, procurávamos água nas redondezas e resfriávamos o motor que parecia prestes a se fundir em uma única massa sólida descaracterizando as partes a qualquer momento. Nossos corpos doloridos pela viagem estavam cobertos pela fuligem da fumaça de óleo diesel e pela fuligem do asfalto que subia da estrada quando os carros e caminhões passavam por nós zunindo, indo e vindo.
Passáramos um mês, aproximadamente, em total contato com os ciclos da natureza, longe da modernidade da vida na grande cidade. A interminável viagem prosseguia lenta, quente, paciente. Rodávamos para frente, mas não nos preocupávamos com a demora excessiva da viagem. Parecia que a perua, assim como nós, relutava em voltar à grande cidade.
Conforme nos aproximávamos crescia em nós a expectativa do que nos esperava. Parecia que estávamos chegando a um mundo novo. Um mundo misterioso e ameaçador, mas maravilhosamente diverso e fascinante. Nos sentíamos como refugiados chegando de uma terra distante. Sentido a expectativa da vida nova aberta a todas as possibilidades. Quando fizemos uma das últimas curvas e a cidade grande se ergueu a nossa frente como uma misteriosa muralha, contivemos a respiração. Matheus parou a perua sem necessidade. Eu senti uma forte taquicardia sob o peito, na verdade todo meu corpo tremia de emoção, desenfreada emoção. O mesmo acontecia com Marcelo e Mara ao meu lado. Eles se abraçaram procurando apoio mútuo.
Marcelo religou o motor e nos arrastamos lentamente para cidade. Fomos até a casa de Mara através de tortuosas ruas. Descarregamos suas coisas e a deixamos lá. Dali fomos para a casa de Marcelo onde descarregamos as demais coisas. Peguei minha mochila, me despedi e fui até o metrô para realizar a última etapa de minha parte da viagem, queria chegar em casa. Parei algumas estações antes e decidi fazer o resto do caminho a pé para reconstruir em minha mente a cidade que deixara para trás há um mês. Como estava diferente. Caminhei até anoitecer e decidi tomar o rumo de casa. Passei pela porta da frente e tudo parecia então uma noite distante em que sonhara embalado por uma febre constante. Sonho delirante de uma noite de inverno febril.
Noite
Turbilhão de expectativas, novos horizontes, novas perspectivas. Minha mente saltitava em pensamentos como se o fizesse nas espirais da fumaça de meu cigarro abandonado no cinzeiro. Noite de inverno, final de inverno. Há dois dias fizera calor de verão superando a primavera, nesta noite novamente o frio de inverno. Aquele frio com vento gelado que convida as pessoas a se recolherem mais cedo, que convida as pessoas a compartilharem seu calor abraçando seus corpos. Aquelas noites que nos lembramos do leito materno procurando seu afeto.
Meus olhos correm das revolutas curvas das letras do texto que leio para as espiraladas curvas da fumaça que sobe. Sinto o vento a correr lá fora solitário, onipresente, dominando a cidade escura. Poucos carros circulam, nem as prostitutas trabalham essa noite.
Salto quântico para o futuro, salto quântico para o passado, dobras temporais, vermes cósmicos e fissuras dimensionais fragmentam meu pensamento. Ainda procuro os padrões que se desenham na vida que se espalha pelo planeta a minha volta. Mais uma noite, mais uma noite após o banho de balde retirando água no poço imaginário de meu passado onde contemplo a paisagem que se estende ante meus olhos no entardecer de algum ponto de uma estrada que vai e vem e me leva para a porta dos mundos.


0 Comments:
Postar um comentário
<< Home