sexta-feira, agosto 04, 2006

URBE - 9

13/04/1990
Enquanto caminhava entre a multidão, invadiam-me a mente imagens de um futuro próximo que desconhecia. A lua acompanhava, impassível, meus hesitantes passos noturnos esperando o momento de se anunciar por entre os prédios. Nos rostos das pessoas que cruzava em meu caminhar visualizava aqueles que veria nos momentos a seguir. Via os passos que daria, as atitudes que tomaria. Sentimentos brotando sem parar em um fluxo espiralado e constante que acelerava as batidas de meu coração, que tornavam meu corpo cada vez mais excitado.

Naquele momento apenas compreendia que meu destino seria inevitável, importava apenas como chegaria lá, o que faria em meu caminho. O momento que há muito prenunciara tomava forma real e estava a um passo de acontecer. Encontrava-se ao alcance de um toque de minha mão trêmula. Essa certeza proveniente do saber preenchia os atos do passado. Todo meu adestramento e estudo revelavam-se então com um sentido, não haviam sido em vão. Reorganizara minha história pessoal direcionando-a para o presente.

Embora os dias se passassem como sempre os aromas pareciam novos. As vidas se misturavam em um acaso imprevisível que me confundia, que me aturdia. A dureza que tanto cultivara se desvanecia a cada dia, a cada ato, a cada palavra. Meu coração se enternecia mais e mais. As lágrimas percorriam meu rosto com mais facilidade drenando lentamente para os lábios que se abriam para recebe-las e sentir seu gosto. Também o sorriso iluminava-me o rosto com mais freqüência trazendo a meus olhos um brilho infantil.

Ao fim da interminável fila do labirinto de minha mente doentia se encontravam as estrelas dispostas de forma diferente que na noite anterior. A expectativa de uma nova vida mais uma vez. E na distração da grande cidade uns se tornavam predadores outros suas presas. Matadores e vítimas, sem premeditação, sem intenção, sem vontade própria, apenas matavam e morriam, insistiam em morrer. O sangue escorrendo, marcando o asfalto e o cimento que seriam lavados na próxima manhã.

Acordei mais uma vez, sempre acordava. Era tarde, o sol tornava o calor do quarto insuportável. Boca ressecada, cabeça pesada, roupa espalhada, evidências da noite anterior. Da rua o som dos carros trafegando contrastava com o silêncio que emergia quando o sinal se tornava vermelho impedindo seu fluxo. Aos poucos ouvi as vozes e os passos daqueles que atravessavam a rua, pensara então que não havia somente carros na cidade.

Despejei a água fria na bacia metálica, preferia as bacias metálicas às pias dos banheiros. Deixei o cigarro queimando em algum cinzeiro, a luz do sol penetrando pela janela e tornando-se sólida ao passar pela fumaça. Lentamente mergulhei a esponja na bacia esperando que absorvesse em todos seus poros a água fria. Levantei a esponja e apertei-a lentamente entre os dedos deixando a água cair aos poucos. Aliviei-me com o ruído da água na água. Esfreguei-a por meu rosto cansado, alívio do calor e do não fazer nada.
Busca de identidade em um mar de ruas sem fim, trajetória da lua. Espiralada fumaça do cigarro abandonado. Escrever uma carta, não envia-la. “O que há de errado com meu coração?” (Titãs), dizia a música que se arrastava lenta pelo quarto saindo do rádio. Eu pensava “O que há de errado?”. Fuga lenta para um futuro distante, longe da dor, da felicidade, da cidade. Fator intrínseco que se relacionava segundo vontade própria a todas as coisas que me cercavam. Rostos que nunca mais veria, desapareceriam em minha lembrança brumosa, carregados pelos ventos do presente.