quinta-feira, setembro 14, 2006

URBE - 13

ATROPELO

Atravessando a rua naquela noite de chuva pensava em minha vida. Uma noite mais escura que as outras noites. O asfalto molhado refletindo muitas luzes, multicoloridas luzes. Luzes de carros, luzes de apartamentos, de letreiros luminosos anunciando algo, gritando-lhe tudo o que gostaria de ouvir. E a água descendo do céu escuro sem identidade, as gotas aparecendo apenas quando traspassadas pelas luzes, ou fazendo-se presentes ao tocar minha pele. Caminhava e parecia eternamente estar a atravessar aquela rua. Como se sempre a atravessara e nunca saíra dela, atravessando e atravessando.

Pensava que não poderia continuar assim, teria que mudar de vida, definitivamente teria que assumir posturas que me fizessem mais feliz. Teria que fazer um esforço supremo para retirar-me dessa roda kármica e impulsionar meus atos para outro tipo de vida, uma vida que lhe desse ao menos mais satisfação, uma vida que ao menos me trouxesse mais felicidade. Queria uma felicidade morna, calma sem altos e baixos emocionais, uma vida normal com final feliz como as que via nos filmes enlatados que engolia em um cinema qualquer.

Queria uma vida sem os tormentos de intermináveis contas a pagar e nunca ter grana para comprar aquilo que quisesse, para viajar para qualquer lugar a qualquer tempo. Talvez a grana me desse a estabilidade que me permitiria ter uma mulher só por muito tempo para me fazer feliz. O reconhecimento de meu trabalho, o sucesso, a fama. E pensando nisso atravessava a interminável rua.

Repentinamente avistara aquela luz sem discerni-la totalmente num primeiro momento. Parecia ser algo conhecido, mas não me lembrava o que. Não me preocupei em desvenda-la naquela noite. Talvez fosse o cansaço, talvez fosse o medo, talvez. No entanto ela se aproximava veloz aumentando sua circunferência ovóide e sua intensidade quando mais próxima. Parecia ser grande, quase de meu tamanho, talvez um pouco maior. Ela me envolveu de uma forma plácida, insinuante, quase sensual. Quando senti o impacto percebi que fora atropelado por um carro veloz, não tive tempo de sentir mais nada em meu corpo, parecia cair. Acordei entre o suor e os lençóis revoltos, novamente a cidade.