sexta-feira, outubro 20, 2006

URBE - 19

OUTROS

Desprezei a inutilidade do não ter feito aquilo que queria, deixei tudo inexplicavelmente desfeito. O vento uivava feroz em minhas janelas, as luzes ofuscavam minha mente. Meu sofrer se resumia a pontadas rítmicas na altura da boca do estomago. Antes de ela chegar e entrar definitivamente em minha vida povoava minha mente com indescritíveis e fantásticos sonhos. A desejava sem a conhecer, idealizava-a como a mulher perfeita que eu acreditava que era. A partir da visão de seu corpo imaginei uma série de comportamentos camuflando a realidade de seu ser. Na verdade não a conhecia, nem mesmo a conheci depois de cinco anos juntos. Quando se cansou de mim e me deixou a cada palavra de amigos comuns descobria outra pessoa que não aquela com quem vivera.

Para meu alívio depois de partir deixou a certeza de que o pesadelo acabara. E quem criara o pesadelo não fora outro senão eu mesmo. Fantasiando uma mulher ideal não enxergava a mulher real que ela era. Em minha ingenuidade adolescente acreditava que eu estava certo de conhece-la. Interpretava seus atos sob um prisma de amante ingênuo que era incapaz de ver segundas intenções ou objetivos escusos. Não importava, agora que ela se fora o pesadelo criado por mim se desfizera e me libertara para a realidade crua do mundo.

Zero, zero, ambos pontos estão eqüidistantes de nada. Naquela noite eu percebi e fiz que não. Recordações, lembranças, passado ancorador, saudades. Peristaltear o cimento entalado na garganta, desamparado movimento de cuspir indiretamente para fora. Parar no boteco da esquina e tomar mais uma para suportar a noite solitária.

O dinamismo estático de meu comportamento social permanecia inalterável apesar de modificado. Quando entramos na igreja antiga o órgão emitia seu místico som e nos fazia duvidar. Buzinas externas interferiam no pensar tentando congestionar e poluir nossa possível religação ao divino. A magia e seus bruxos não tinham lugar nas crenças metropolitanas e judaico-cristãs. Para mim o inexplicável permanecia sem explicação e um outro dia começava com seus sons. A dissonância me levava a um estado perceptivo alterado como quando ingeria álcool ou outra droga qualquer.

Como descendente eu destruía, a cada novo comportamento adquirido, as tradições perpetuando dessa forma a luta milenar entre gerações, hoje era predador, amanhã seria presa. Deslizando pelo asfalto com meus tênis de borracha não tinha noção de minha velocidade, não ouvia o ressoar de meus passos. Ou ficava observando o cronômetro a cada minuto, ou a cada segundo, mas o tempo não passava. A escuridão propiciava a ilegalidade, a marginalidade. Quando os via em volta de alguém, minha cabeça se abaixava cúmplice ao passar e perceber de que se tratava, não olhava.

Quando entrei no beco escuro para cortar caminho quase me arrependi ao ver os olhos cegos que brilhavam na escuridão e não respondiam. Passei apressado a seu lado. Estava cansado de ouvir as rebuscadas e perdidas teorias sociais e políticas que eram proferidas nos salões esterilizados da academia. Não suportava o conservadorismo idiota quando eram tecidas as considerações ponderadas a respeito de novas idéias. Não suportava mais o equilíbrio da rejeição civilizada e acadêmica dessas idéias realizadas por aqueles que me diziam como deveria pensar e como deveria ser para alcançar o sucesso. Os inabaláveis dogmas que concretizavam uma realidade estatística de pesquisas impecáveis, imparciais e irrefutáveis pagas por aqueles que podiam.

Mergulhando na infinita espera do acontecer passavam os dias, gastava-se meu cronômetro. Indiscutível verdade aquela que não comprovava, pois residia dentro de mim e eu não sabia. Dizia que procurava sem cessar e nunca alcancei, nunca achei nada, nunca soube o como ou porque, nunca tive certezas. Quando me cansei de procurar minha já cansada e atrofiada percepção não captava mais a resposta próxima e evidente. Passava de um ato ao outro sem questionar. Tinha medo da verdade individual, tinha medo de minha verdade.

Apesar de sempre tentar me adaptar às novas condições sociais, como todo excedente, como todo desajustado, conscientizei-me de que sempre sobrava, de que não encaixava em nenhuma situação. E sentia-me assim apesar de ser aceito pelo grupo ao qual me adequava. Faltava-me uma engrenagem fundamental e não sabia qual era. A tendência seria melhorar, me diziam, mas a lascívia e a luxúria não me permitiam, sempre me entregava a mais um gole, sempre queria mais.

Certa noite tive um sonho longo, daqueles cuja sensação e clareza não nos abandonam durante dias. Sonhei que desde que nossos soberanos estados haviam sido destruídos reinara a ordem geral. A sociedade se multidividira atingindo a infinita individualidade. Cada ser era o que era e tinha uma função não ditada por lei. O ser humano descobrira sua verdadeira missão ou dever fundamental no planeta. Descobrira finalmente aquilo que movimentava e era causa de sua existência. Todo ser humano passou a considerar-se guardião individual da ordem da natureza planetária no universo. Para compreende-lo bastava-nos contemplar. Servíamos para contemplar e contemplávamos e crescíamos em paz e harmonia. E assim terminara o sonho. Acordei e enjoou-me o fato de não ser aquilo que desejaria ser.

Vítima de uma ou mais soterradas maneiras de fazer os futuros alguém caminhava, falava e trabalhava sem pensar em que. Surpreendi-me e lamentei tristemente ao perceber que esse alguém era eu. Deu-me náuseas perceber que me observava como se estivesse fora e dentro de mim. Mareado lancei os braços ao chão para atenuar o impacto de meu corpo ao cair e voltei a andar de quatro o que me dava mais base que andar de pé. Compreendi que a forma não existia sendo rígida e passei a criar novas formas e fazia isso enquanto permanecia deitado de lado no chão. Criava e destruía, não me fixava a nada, pois pensava que poderia ser fatal. Tinha em minha obra a lição, não me bastava, não era nada, gostaria de tê-lo conhecido.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

amore, adorei te reencontrar também. Li seu texto. As "marcas" da parede são o rosto daquela mulher. Ela ficou na minha cabeça. Qual o seu email? Beijos, Fabiana (cantora).

8:42 PM  

Postar um comentário

<< Home