quinta-feira, setembro 28, 2006

URBE - 16

CRESCENTE

Ao olhar pela janela e percebe-la crescente tive certeza de que um novo ciclo se iniciava. Olhei para os livros e manuscritos inertes nas prateleiras de meu quarto e vi como a poeira caía lentamente através da luz da cidade que parecia eterna. E essa lentidão me mostrava um tempo dentro do tempo, um tempo que não tinha início nem fim.

Como se saísse de uma redoma acústica senti cada som que invadia o quarto. Individualizei-os em seu espaço único, concentrei-me em cada um até reuni-los em uma sinfonia caótica que me fez desfalecer. A massa sonora, tão grande, varreu como um vento paralelo minha consciência de ser.

Recobrei-me do choque depois de algumas horas de sono. Lembrei-me de onde viera e o que fizera até aquele momento de despertar. Ao forçar minha memória imagens de corredores formados por grandes torres onde se acumulavam pessoas se sucediam em turbilhão. Ele delimitava um céu ora cinzento, ora azulado, ora escuro, ora iluminado.

A minha esquerda deparei-me com uma estranha abertura na parede por onde entrava a luz da lua. A abertura me mostrava outro mundo, paralelo, repleto de torres e corredores. Elas se expunham sob uma amarelada luz pulsante que parecia vir de todos os lados. Seus ângulos retos e suas aberturas refletiam imóveis objetos luminosos.

No interior desses objetos luminosos vi mais sólidos ângulos retos repetindo-se em intermináveis padrões de luzes e cores. Pelo chão onde me encontrava andei pelo que parecia um cubo localizado em uma torre semelhante àquelas que vira pela abertura da parede. Abatido repentinamente por pesado sono rendi-me ao pesar dos olhos e abandonei meu corpo ao sabor daquele poroso chão que me chamava ao leito.

Durante o sono, em sonhos com imagens por demais nítidas, relembrei lugares, pessoas, rostos, mãos, bocas, intenções, súplicas. Acordei para tomar consciência do que vivera antes. Sentia-me como observador independente de tudo o que me ocorrera, como se tivesse vivido sem participar de fato como agente operante de minhas ações e de meus atos.

Relacionei-me com seres humanos e também com seres mais sutis. Vaguei por anos em uma dimensão que não a da percepção humana comum. Como se meu corpo grosseiro fosse uma peça independente de minha vontade. Corpo incerto, mais que matéria orgânica auto-organizada. Levado pelos entes que me rodeavam a adotar padrões pré-determinados de comportamento independentemente de minha vontade.

Despertei a cada dia como se não soubesse quem era e tivesse que recapitular minha vida até então. Recompondo a memória a cada manhã. Nessa nova condição, como tudo me parecia novo a cada dia, percebia cada porção infinitesimal de meu novo espaço e de meu corpo. Arrisquei-me a olhar, vez por outra, pela abertura na parede e notei que além da luz lunar havia outra luz mais regular que banhava tudo. Ela representava unidades de tempo e determinava a atividade de outros corpos como o meu.

Dia a dia ampliei a extensão de minha consciência. Aumentava a ansiedade de conhecer esse mundo novo que se estendia, tinha certeza, para além da torre em que me encontrava. A cada período de sono fortaleci minha convicção na existência desse mundo. Os sonhos que tinha referiam-se a lembranças de uma vida passada ali. Senti-me perdido nas estranhas revoluções de um tempo helicoidal que avançava em todas as direções e ocorria simultaneamente fundido passado, presente e futuro. Estava na cidade.