sábado, fevereiro 25, 2006

ARCEBURGO - 11

– 22/07/85 –

Dia

Domingo, dia de sol, a cidade fervilhava com pessoas que iam e vinham. Era uma tarde quente, cinco horas, o bar do Tião abrira há pouco. Não nos importavam as pessoas que passeavam circulando pela praça. Os poucos carros que se deslocavam pareciam distantes. Alheias à nossa vontade as moscas insistiam em nos incomodar voando e zunindo à nossa frente, tocando com suas irritantes patas suaves nosso rosto, ameaçando nossa comida. O movimento do braço levando o copo à boca refletiu-se em meu olhar, com o copo ainda no ar parei ao ver o brilho do dia refletido nos cabelos da bela morena.

Eu e Marcelo passamos a tarde de domingo bebendo e jogando sinuca, olhando as mulheres que desfilavam em suas roupas de domingo e conversando com o Tião. Alguns vizinhos que eu não conhecia nos cumprimentavam e disseram que estavam admirados com nosso trabalho no sítio. Pensavam que não agüentaríamos os dois primeiros dias, ganháramos seu respeito. Aos poucos nos aceitavam no lugarejo.

Provei pela primeira vez em vários dias a sonhada, maravilhosa, apetitosa e desejada carne em um sanduíche delicioso. A fibra se desfazendo entre meus dentes me dava um prazer mais. E o senti mais delicioso ainda por minha fome do que por esmero do chapeiro. A cerveja descia gelada pela garganta embriagando-me aos poucos, suas bolhas geladas acariciando como mil mãozinhas meu palato e parte da garganta a cada gole. A sensação de frescor e satisfação não poderia ser melhor. A cada tacada um gole, a cada gole mais álcool penetrando nas veias, subindo à mente. E assim se foi aquele domingo cálido.

Noite

Visto que por vezes tentávamos fazer daquela vela duas, nos contentávamos com a graça de apenas uma chama. Acendíamos cigarros rituais feitos à mão e sentíamos a vela a queimar no centro do chão da sala tão conhecido e íntimo. Sua luz não trazia nada de novo. E, apesar de tentarmos, não conseguíamos nos comunicar com as forças da natureza.

Ao mesmo tempo em que discerníamos nossas diferenças internas, vagos lumes nos cercavam voando ou correndo ao nosso redor. Os lumes, mesmo que não soubéssemos, não eram capazes de fazer o mal. Faziam apenas aquela dança de rodear até encontrar um par e, em seguida, se apagavam para somente reacender após o clímax copular. Mas esta nova luz era tão diferente que a anterior que os lumes deixavam de ser lumes para ser vagas estrelas refletidas no lago escondido pela mata naquela noite de inverno.

E houve a história de um lume vago, solitário, que a cada noite, verificava, insano, que nada daquilo que não compreendia não significava o que pensava. E, ao parar numa vertente após longo percurso, percebeu que ao seu redor não havia mais que aquilo que poderia sentir. Apoderou-se dele profunda agonia por não saber o que poderia ser a realidade absoluta, a solidão presente na escuridão.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

ARCEBURGO - 10

– 21/07/85 –

Dia

Levantamos excitados ante a expectativa de iniciar o mais importante trabalho que faríamos no sítio, nosso objetivo maior na empreitada. Começaríamos colocando a mangueira para a captação na nascente e a desenrolaríamos metro a metro pelo leito do córrego aproveitando o declive do terreno até um ponto em que desviaríamos para a casa, ao lado da cozinha. Levar o rolo da mangueira até a nascente foi um desafio físico, pois além de carrega-la tínhamos que abrir, em alguns pontos, picadas de acesso. Quando chegamos à nascente paramos e nos deliciamos com sua água fresca e com a tranqüilidade do ambiente ao redor. As sombras projetadas pelas copas refrescavam e filtravam o forte sol de inverno que brilhava acima.

Começamos o trabalho após a pequena pausa de descanso. Desenrolávamos a mangueira metro a metro procurando o melhor percurso e enterrando-a no leito do córrego sempre que possível. Marcelo limpava o leito à frente indicando o percurso enquanto eu carregava nas costas e ombros a mangueira. Parávamos e voltávamos enterrando-a. Nossos pés afundando na lama fina do leito e das margens, ao abrirmos a vala para enterrar a mangueira água e lama subiam para o ar sob a força de nossos enxadões atirando lama e água em nossos rostos. Avançávamos lentamente pela floresta em um trabalho insano e extenuante.

Em determinado momento Marcelo se adiantou limpando o terreno à frente pelo leito do córrego deixando-me para trás com a mangueira. Estávamos próximo ao final do trecho de floresta e ele queria ver como estava a situação no antigo açude de gado que drenáramos dias atrás. Continuei sozinho a realizar o trabalho de desenrolar a mangueira e voltar para enterra-la no leito do córrego. A cada passo que avançava minhas pernas se enterravam mais na lama dificultando o trabalho e deixando-me furioso a cada escorregada que dava.

Estava concentrado procurando não desperdiçar minha energia, respirava pelo nariz e soltava o ar devagar a cada esforço que realizava. Quando vi a claridade do campo insinuando-se pela folhagem da floresta. Parei com meu trabalho, subi silenciosamente pela vertente inclinada que levava parta dentro da floresta pretendendo surpreender Marcelo e assusta-lo somente para brincar. Fui de árvore em árvore andando silenciosamente evitando pisar as folhas e galhos secos caídos. Subi quase até o topo para poder fazer uma aproximação furtiva sem que fosse visto. Quando descia em direção onde Marcelo se encontrava ouvi vozes em uma conversa áspera. Diminui meu ritmo de descida, apurei os ouvidos e me esgueirei até uma rocha saliente um pouco acima de onde estava o açude que havíamos drenado.

Marcelo estava no leito do córrego com as pernas enterradas na lama segurando seu enxadão e olhava para cima. Parados na margem oposta dois homens montados. Um em um cavalo de raça, o outro em um cavalo híbrido. Era o “coronel” vizinho de Marcelo e seu capanga ostensivamente armado. Acompanhei a conversa em silêncio e fora do ângulo de visão de todos. A ameaça explícita do “coronel” era mais enfática pela presença de seu capanga que encarava Marcelo belicosamente. Como não obtivera a passividade servil de Marcelo anteriormente o “coronel” ameaçava com suas armas sem perder sua pose colonial. Ele exigia, apesar da decisão judicial em contrário, que Marcelo mantivesse o açude para que seu gado saciasse sua sede. Marcelo argumentava que ele precisava da água para sua futura lavoura e por isso procurava restituir o curso natural do córrego.

Sentindo o aumento da tensão entre eles decidi fazer uma aparição que os desnorteasse. Subi na rocha em que me escondia e do alto interrompi a conversa perguntando se estava tudo bem. O “coronel” e seu capanga olharam para cima surpresos com minha interrupção, desviando os olhos de Marcelo que imediatamente saiu do leito do córrego e se colocou ao lado do coronel fora da linha de tiro do capanga. A maior surpresa deles, sem dúvida, deveu-se à interrupção e às roupas que eu usava. Quando fora convidado por Marcelo e Mara para trabalhar no sítio deles optara por levar um uniforme de guerra na selva que ganhara de um amigo tempos atrás. A camuflagem do uniforme associada a meu rosto enlameado, à boina verde que levava à cabeça e à falta de expressão em meu olhar que se fixava nos olhos do capanga foram um fator decisivo no rumo do encontro.

Não trocamos bravatas, o “coronel” me perguntou a que batalhão pertencia e eu lhe respondi que isso eram assunto e interesse apenas militar e que um civil como ele não tinha acesso a essas informações, mas que se ele insistisse em fazer ameaças sem dúvida seria visitado uma noite dessas por algumas pessoas que lhe dariam todas as informações que quisesse. Sorrindo com um toque de insegurança o “coronel” disse que era só curiosidade que não havia nada de errado em conversar com os vizinhos e que estava tudo bem. O capanga olhava para o “coronel” e para mim que não tirava os olhos dele enquanto segurava uma faca escondida em minha mão direita. Uma profusão de frases desconexas irromperam do “coronel” e de seu capanga um pouco antes deles se retirarem amistosamente. Marcelo e eu retomamos nosso trabalho indo para o interior da floresta pelo córrego. Quando chegamos onde estava a mangueira largamos nossos corpos, cada um em uma margem e desatamos a rir histericamente, gargalhávamos sem parar. Não acreditávamos no que acabara de acontecer. Poderíamos ter morrido ali mesmo ante a ameaça explícita do “coronel” e seu capanga.

Quando terminou o histerismo procuramos regularizar nossas respirações e então Marcelo se lembrou que Mara estava sozinha na casa. Saiu em disparada pela floresta e eu decidi seguir por outro caminho. Chegamos à casa, Marcelo pelo caminho mais direto, eu sem ser visto pela lateral. Me deslocava tenso arrastando-me pelo chão, escondendo-me por trás das árvores e assim cheguei á casa pela porta de trás a tempo de ouvir as gargalhadas de Mara e Marcelo. Juntei-me a eles nas gargalhadas aumentando-as ao contar como chegara até ali. Antes de retomarmos nosso trabalho ajudamos a Mara com as tarefas domésticas mais pesadas e aproveitamos para tomar um café.

Noite

Vi seus braços cruzados e o semblante duro apesar da distância. Podia até mesmo vê-lo ou imaginar que o via a correr e saltar pelos campos ou ruas de uma movimentada cidade. Ou poderia estar no telhado espiando as meninas a urinar acocoradas atrás da igreja e assobiar para elas desde a escuridão da noite, enquanto a quermesse preenchia o ar com sons metálicos, mais que humanos.

E naquele fervilhar de olhares, copos, fumaça e música estridente, perceber a mancha de óleo no canto esquerdo do pé da mesa. E percebe-la por estar olhando para alguém que perdera significado por desconhecido ser ou porque seu olhar transmitia a insuportável marca da monotonia do pasto e de horizontes largos. E imaginar que as estrelas estavam, hora sim, hora não, em algum lugar definido, porque ao olhar para o chão não restava mais que a areia e pegadas de alguém que havia passado. E, ainda, apesar das nuvens, entrever as estrelas e planetas que se confundiam sobre o fundo escuro do universo. Desencontrado assim, o pensar e o fazer.

Entrar no primeiro bar e pedir um café, não por beber, apenas para contemplar o que acontecia comigo. Caminhava na cidade, sabia para onde ia, mas a repentina onde de imagens de um passado distante que me invadira criara uma profunda vertigem. Quase não conseguia pôr um pé ante o outro para continuar minha caminhada até o primeiro apoio que pudesse encontrar. Santo bar e seu café reconfortante, um cigarro para disfarçar. A tragada nervosa enquanto contemplava a calçada e as pessoas para ter certeza de que estava onde estava. Para ter certeza que a realidade ainda era a mesma e eu um só. Inspirar profundamente antes do primeiro gole e aspirar o aroma quase doce do café fumegante para restabelecer o equilíbrio e afastar o tremor do corpo estabilizando as mãos.

Tudo estava normal de novo. A calçada parecia sólida e as pessoas iam e vinham como sempre. Carros buzinavam e seus motores roncavam em freqüências muito próximas. Paguei a conta e me lancei á calçada entre todos. Segui o fluxo sem interceptar nenhuma trajetória. Caminhava com uma fluidez fora do normal. Sentia o ar entre as pessoas como se fosse um fluído de densidade nova. Como se fosse sugado pelo fluxo incessante de ir e vir de todos os dias.

sábado, fevereiro 11, 2006

ARCEBURGO - 9

– 20/07/85 ­–

Dia

Acordamos cedo, como sempre, e repetimos o ritual diário anterior ao café da manhã. Fui até o curral pegar o leite e encontrei o casal de corujas que me acompanhava todas as manhãs enquanto passava próximo a seu ninho. Cruzavam meu caminho com seus vôos rasantes para se tornar evidentes. Pousavam nos mourões e ficavam me olhando enquanto suas cabeças faziam agressivos movimentos para cima e para baixo. Voltei com o leite e fui ajudar Marcelo a regar as mudas de árvores frutíferas do pomar que começavam a verdejar crescendo, folha por folha, sob nossos olhares. Mara arrumava as coisas para a ida à cidade daquele dia escrevendo uma longa lista de mantimentos e outras coisas que precisaríamos. Após o café partimos para a cidade o Marcelo e eu.

O acontecimento me excitava a ponto de provocar uma leve taquicardia. A adrenalina que circulava em meu sangue deixava meus sentidos expandidos resultando em uma nova percepção da realidade, mais áspera, mais presente. As coisas habituais se tornaram novas, como se as visse pela primeira vez. A cada toque uma nova textura conhecida, a cada odor um novo aroma desconhecido. Aprofundava-me nas sensações perdendo a noção do que estava fazendo, a tal ponto que parecia distraído embora estivesse profundamente concentrado na percepção das novas sensações.

Nosso principal objetivo naquele dia era comprar tijolos e cimento para fazer o tanque de água e a mangueira que iríamos estender da nascente até o tanque e do tanque à casa. Quando chegamos a loja ainda estava fechada. Decidimos ir até um bar onde pude saborear um sanduíche de carne com um ovo frito nas primeiras horas da manhã. Tomamos alguns cafés e contemplamos as pessoas que iniciavam seu dia sem pressa. A loja abriu e compramos a metragem calculada de mangueira, dois milheiros de tijolos e o cimento necessários. Começamos então a carregar os tijolos na caçamba da perua. Inicialmente desajeitados eu jogava três tijolos amontoados por vez para Marcelo que estava na caçamba. Conforme os movimentos se tornavam mais naturais fui aumentando até jogar uma pilha de cinco tijolos por vez. Nossos dedos se esfolavam desacostumados aos movimentos. Os tijolos iam, pouco a pouco, retirando pequenos pedaços de pele de mossas mãos, feriam nossos dedos prensando-os. Mesmo assim não parávamos tamanha era nossa concentração e determinação em cumprir a tarefa do dia. Não lembro quanto tempo levamos para encher a caçamba, mas no final da tarefa lembro-me que o sol ia alto no céu e nossos corpos estavam avermelhados pelo pó dos tijolos que se grudara no suor. Além das roupas, nossos rostos apresentavam uma máscara avermelhada. Colocamos o cimento encima dos tijolos e a mangueira por cima de tudo, amarramos um encerado cobrindo o material e saímos da loja para fazer uma leve refeição antes de recomeçar a viagem de volta para o sítio.

A perua carregada se deslocava lenta devido ao peso, soubemos nos primeiros metros que a viagem seria longa apesar da pequena distância. Após os três primeiro quilômetros o radiador da perua ferveu e tivemos que parar. Conseguimos água e resfriamos o radiador após quase uma hora. Retomamos a viagem que se tornou interminável, pois parávamos sempre a cada três ou quatro quilômetros impedidos de avançar pelo teimoso radiador. O calor e o cansaço me faziam cochilar quando rodávamos lentamente pela estrada, a maior parte do tempo pelo acostamento para não atrapalhar o tráfego. Mais lento se tornou nosso deslocamento quando saímos da estrada principal, asfaltada e entramos na estrada secundária de terra batida.

Chegamos à casa onde Mara nos esperava atarefada próximo ao fim de nossa habitual jornada de trabalho. Tomamos um café rápido e começamos a descarregar os tijolos ao lado do córrego onde faríamos o tanque. Quando terminamos o sol já se punha e a noite se aproximava. Voltamos até a casa, guardamos a mangueira e naquele dia não treinei devido ao cansaço, fui direto para meu banho de balde enquanto Marcelo namorava Mara à porta da cozinha contemplando meu ritual e o sol que se punha.

Noite

Abriu-se a porta apara algum lugar indefinível, por não conhecer seu tempo não sei quanto tempo permaneci. Sei que nos reunimos ao redor de uma mesa iluminada por velas e a conversa versava sobre os acontecimentos que se passaram em dias distantes. A expectativa de algo novo aumentava a cada palavra, aumentava também a agitação das chamas das velas embora o óleo permanece-se inalterado. Fez-se, então, à minha direita, um muro um tanto quanto penetrável e à esquerda, uma névoa amarelo esverdeada que convidava à exploração do desconhecido. Fez-se noite em pleno dia sem prenúncio ou explicação.

A partir daquele ponto, tudo pareceu não mais se encaixar na imperturbável ordem que regia o universo estático de nossas opiniões. Relembrando reafirmávamos nossa realidade, consolidando-a a cada detalhe acrescentado, reconstruíamos assim nosso universo presente a partir de um novo passado. Histórias pessoais repetidas e entrelaçadas. Caminho único para frente sempre à frente. Mergulhávamos na mediocridade inata que aceitávamos com a estupidez sincrônica de cada dia.