domingo, abril 30, 2006

URBE -1

“Ciudades de luz, maravillas y rarezas del corazón humano que nadie puede ver, excepto los peregrinos del espíritu que son los hombre de corazón puro”. (http://www.webislam.com/Descarga/Imagenes/Imagen_Texto/urbe.htm)
“.... as figuras se sucedem como se estivessem sobre
um tapete que, desenrolado, se estira em movimentos
regulares. Sempre novas, nunca repetidas, mas semelhantes
entre si, .... “ (De volta das Hespérides – Heiópolis – Ernst Jünger)
Urbe
Em uma noite escura uma luz estava acesa, em um quarto de um prédio, em uma rua de uma cidade qualquer. A fumaça que espiralada cobria a lâmpada revelava o acender constante dos cigarros que nem sempre permaneciam em minha boca. Esse acender constante de cigarros que materializava minha angústia. Essa angústia de ser, sem saber direito o quê. Assim o pequeno burguês que vivia em mim chegou a seu fim. Tristeza profunda, solitária e abandonada.

Acompanhei a fumaça que brincava com a luz e percebi as sombras na parede, projetei minha mente rumo ao teto e não pude mais sair das sombras que se formavam. Meus padrões mentais pareciam voar acompanhando a fumaça e a realidade se deformou ante a dilatação do tempo e a contração do espaço. Meus olhos me levaram para cima e minhas pernas para baixo dividindo meu ser. As sombras completaram a fragmentação e os estilhaços se espalharam por todo o quarto, por todo o prédio, por toda a cidade. Perdi-me preenchendo o hipervolume que compunha o espaço. Eu era, então, a cidade.

Essa cidade que tanto amava, essa cidade que tanto odiava. Essa cidade que insistia em despertar em mim sentimentos antagônicos me deixando em constante tensão. Tentei deixa-la algumas vezes, fugi para longe. Fora bom alargar meus horizontes. Mas sentira sua falta, a falta da opressão, da constante tensão, da excitação de nunca saber o que estava por vir. De ter que ficar atento a cada instante, de acordar para o mundo e vive-lo com uma alucinante intensidade, como se fosse morrer no instante seguinte. Amor em tempo de guerra. E sentira sua falta como o viciado sente a falta da heroína, da cocaína, do cigarro. Crises de abstinência, aumento da ansiedade, falta de sono e apatia. Não tive escolha, somente a volta à grande cidade poderia me curar. Somente a volta poderia me restituir o pouco de normalidade que conhecia.

terça-feira, abril 18, 2006

ARCEBURGO - 19 (FINAL)

– 02/08/85 –

Dia

Acordamos pela última vez com as vacas sendo recolhidas do pasto. Arrumamos as últimas coisas e as levamos para a perua. Estávamos prontos para retornar à cidade grande. Tomamos um café rápido e passamos pelo curral para um último gole de leite e a despedida final do “homem das vacas”. As estrelas ainda brilhavam no céu noturno, os odores pareciam ressaltados e nos atingiam como algo sólido naquela manhã.

Passamos pelas porteiras ainda na escuridão, a perua carregada rangia ao passarmos nas valetas e buracos do caminho. O esforço do motor se fazia sentir nos tremores da estrutura. O odor do óleo diesel queimado em excesso nos chegava em golfadas trazidas pelo vento que se deslocava mais rápido que nós. Ganhamos a primeira estrada secundária de terra, depois de uma parada obrigatória para resfriar o motor, chegamos à estrada principal que nos levaria para Sampa.

Marcelo aproveitava cada descida para resfriar o motor. Quando acelerava o fazia dentro de um limite que nos permitia rodar alguns quilômetros sem parar. Mas paramos infinitas vezes, parecia que nunca deixaríamos de parar. Tínhamos a impressão de que iríamos parando cada vez mais sem nunca podermos chegar a nosso destino.

Cada parada era um ritual de resfriamento, procurávamos água nas redondezas e resfriávamos o motor que parecia prestes a se fundir em uma única massa sólida descaracterizando as partes a qualquer momento. Nossos corpos doloridos pela viagem estavam cobertos pela fuligem da fumaça de óleo diesel e pela fuligem do asfalto que subia da estrada quando os carros e caminhões passavam por nós zunindo, indo e vindo.

Passáramos um mês, aproximadamente, em total contato com os ciclos da natureza, longe da modernidade da vida na grande cidade. A interminável viagem prosseguia lenta, quente, paciente. Rodávamos para frente, mas não nos preocupávamos com a demora excessiva da viagem. Parecia que a perua, assim como nós, relutava em voltar à grande cidade.

Conforme nos aproximávamos crescia em nós a expectativa do que nos esperava. Parecia que estávamos chegando a um mundo novo. Um mundo misterioso e ameaçador, mas maravilhosamente diverso e fascinante. Nos sentíamos como refugiados chegando de uma terra distante. Sentido a expectativa da vida nova aberta a todas as possibilidades. Quando fizemos uma das últimas curvas e a cidade grande se ergueu a nossa frente como uma misteriosa muralha, contivemos a respiração. Matheus parou a perua sem necessidade. Eu senti uma forte taquicardia sob o peito, na verdade todo meu corpo tremia de emoção, desenfreada emoção. O mesmo acontecia com Marcelo e Mara ao meu lado. Eles se abraçaram procurando apoio mútuo.

Marcelo religou o motor e nos arrastamos lentamente para cidade. Fomos até a casa de Mara através de tortuosas ruas. Descarregamos suas coisas e a deixamos lá. Dali fomos para a casa de Marcelo onde descarregamos as demais coisas. Peguei minha mochila, me despedi e fui até o metrô para realizar a última etapa de minha parte da viagem, queria chegar em casa. Parei algumas estações antes e decidi fazer o resto do caminho a pé para reconstruir em minha mente a cidade que deixara para trás há um mês. Como estava diferente. Caminhei até anoitecer e decidi tomar o rumo de casa. Passei pela porta da frente e tudo parecia então uma noite distante em que sonhara embalado por uma febre constante. Sonho delirante de uma noite de inverno febril.

Noite

Turbilhão de expectativas, novos horizontes, novas perspectivas. Minha mente saltitava em pensamentos como se o fizesse nas espirais da fumaça de meu cigarro abandonado no cinzeiro. Noite de inverno, final de inverno. Há dois dias fizera calor de verão superando a primavera, nesta noite novamente o frio de inverno. Aquele frio com vento gelado que convida as pessoas a se recolherem mais cedo, que convida as pessoas a compartilharem seu calor abraçando seus corpos. Aquelas noites que nos lembramos do leito materno procurando seu afeto.

Meus olhos correm das revolutas curvas das letras do texto que leio para as espiraladas curvas da fumaça que sobe. Sinto o vento a correr lá fora solitário, onipresente, dominando a cidade escura. Poucos carros circulam, nem as prostitutas trabalham essa noite.

Salto quântico para o futuro, salto quântico para o passado, dobras temporais, vermes cósmicos e fissuras dimensionais fragmentam meu pensamento. Ainda procuro os padrões que se desenham na vida que se espalha pelo planeta a minha volta. Mais uma noite, mais uma noite após o banho de balde retirando água no poço imaginário de meu passado onde contemplo a paisagem que se estende ante meus olhos no entardecer de algum ponto de uma estrada que vai e vem e me leva para a porta dos mundos.

quinta-feira, abril 13, 2006

ARCEBURGO - 18

– 01/08/85 –

Dia

Após a bebedeira da noite acordamos cedo, porém mais tarde que o normal. O sol já tocava tudo com seu brilho suave de inverno. Fui buscar o leite e me detive em casa de um vizinho que me convidara a tomar um café. Conversamos como compadres, como se o fizéssemos há muito. Foi uma conversa suave de colheitas e clima, enquanto as galinhas ciscavam ao redor. A fumaça do fogão a lenha subia lenta e seu aroma se espalhava como incenso em um templo perdido no tempo.

Fim da conversa caminhei pelo pasto quente. Os lagartos se escondendo a minha passagem, as corujas gritando mais uma vez enquanto voavam ao meu redor me escoltando até sair de sua área de vida. Cheguei à casa e encontrei Matheus e Mara arrumando e limpando tudo. O pai de Mara arrumava suas coisas para partir. Ajudei na limpeza até a hora em que levariam o pai de Mara para a cidade, onde pegaria o ônibus que o levaria de volta a São Paulo.

Levaram-no antes do almoço. Mais uma vez fiquei só no sítio entregue a novas tarefas. Repetia mecanicamente o ritual de limpar touceiras de narpiê onde fosse necessário, Marcelo já me instruíra a respeito antes de ir à cidade. Trabalhava duro, ritmicamente, para a intervalos longos, enrolava um cigarro e o fumava com prazer antes de retomar o trabalho. A lâmina afiada do enxadão cintilava sob os raios do sol da tarde quando ouvi a perua chegando de volta da cidade.

Marcelo se trocou e veio me acompanhar no trabalho. Terminamos antes do habitual. Era a última tarefa a que nos havíamos proposto. Andamos pela propriedade avaliando o que fizéramos e projetando o que faríamos em outra oportunidade. Nossa temporada de trabalho no campo chegara ao fim. Os fardos de capim envolvendo a composteira, a fumaça saindo pela chaminé da casa, a água escorrendo pela mangueira, coisas inexistentes antes de nossa chegada nos davam enorme satisfação do trabalho realizado. Caminhamos lentamente acariciando tudo com os olhos, guardando cada detalhe como se nunca mais fossemos voltar, como se fosse nosso último dia na terra. Uma melancolia eufórica nos inundava. A cada respiração parecia que os dourados raios do sol de inverno nos invadiam o peito enchendo-nos de luz.

Terminamos a vistoria, fui para meu banho ritual, nessa noite prepararíamos o que faltava para a viagem de retorno.

Noite

À meia luz via fumaça subindo lentamente em espirais quase horizontais. Nem a penumbra nem a fumaça aliviavam minha raiva. Caíra em minha própria armadilha, deixara me levar, mais uma vez, pela lei dos homens. Reagi como alguém normal ante a impossibilidade de fazer. Pensamentos de aniquilação em massa passaram por minha mente ainda doentia.

Senti a energia enorme saindo do baixo ventre percorrendo cada milímetro pelo centro do corpo ativando canais, iluminando-os, excitando-os. Quando chegou a minha cabeça senti cada polegada de meu crânio vibrando ante a potência dessa energia. Ela explodiu em uma ira além dos limites humanos da demência, da loucura ou da administração pública. Pensei em cada homem público que se esbaldava na matéria às custas do horror e do sofrimento humano de seus pares em todas as nações. Discutiam em jantares nababescos exacerbando seu sibaritismo. Suas taras encobertas por uma camada fina de polidez e correção nojentas.

Discurso politicamente correto de intelectualóides de merda encontravam-se cegos ao horror que criavam. Seus descendentes colheriam os frutos podres da desolação planetária em meio a guerras estúpidas e carnavais carnais e idiotizantes.

Não importava, minha fúria era pura além dessas mentes medíocres que se contentavam com pouco. Eu queria o horror pelo horror. A morte de milhões de seres humanos sem o menor aviso, sentido ou reivindicação política ou resgate milionário. Deixei a fúria subir e atingir seu grau máximo até o primeiro encontro com algo mais humano.

Então olhei para aquele ser que se me assemelhava olhando atônito, sem compreender o que me acontecia. Percebi que tentava colocar um pouco de lógica em meus impulsos, mas tudo sucumbiu ante o olhar daquele que eu amava. Me desloquei mais um pouco e encontrei outro ser a quem também amava e a energia que se voltava pára a destruição sem sentido da humanidade sem rosto se converteu lentamente em uma força que levava em outra definitiva direção.

Desconhecida direção para mundos paralelos onde a perspectiva era outra. Onde a mediocridade era um reflexo do medo dos grandes egos que se deslocavam pelo planeta. Não cheguei a sentir pena ou compaixão por essas pobres entidades ocas e desorientadas. Um iluminado já dissera há muito que eles não sabiam o que faziam. Eu agradeci pela possibilidade de saltar sobre o abismo de minha mente e controlar minha loucura convertendo-a em normalidade aparente. Eu era um guerreiro, só me restava a batalha diária contra o maior dos inimigos. Um inimigo implacável que apenas espreitava um momento de fraqueza para me dominar completamente. Meu ego em todas suas manifestações sedutoras. Prometendo-me poder, fama, grana e reconhecimento.

Nesse instante de insanidade temporária senti que algo se quebrara em mim. A dissociação fora sutil, mas forte o suficiente para senti-la mesmo sem me concentrar profundamente. Era algo real que me impulsionava de dentro para fora e de fora para dentro, transformando minha percepção e me acalmando. Minha mente se rendeu à neutralização das flutuações mentais até atingir o equilíbrio da superfície de um lago imperturbável. Naquele momento senti que uma nova energia e uma velha condição voltava a meu ser. Nada importava, apenas meus atos e minha entrega a cada um deles com todo meu ser, como se somente me restasse esse ato. Como se fosse a última vez que o faria na face da terra. Pleno dessa consciência somente me restava dormir e ver como seria o dia seguinte.

sábado, abril 08, 2006

ARCEBURGO - 17

– 30/0785 –

Dia

Logo de manhã sentimos a excitação no ar. Fomos até o tanque antes de qualquer tarefa e colocamos o cano para enche-lo de água. Esperamos um pouco até haver água suficiente para lavarmos o fundo e as paredes. Drenamos a água suja pelo ladrão e voltamos para a casa para regar as mudas. Quando acabamos, ajeitamos tudo para o churrasco. Cadeiras, bancos, mesas pra fora, a churrasqueira emprestada, carnes condimentadas, carnes sem condimento, começamos a testar o bombeamento do chope. Quando terminamos tudo ainda era cedo para os primeiros convidados haverem chegado, por isso resolvi ir até a clareira e realizar um treino puxado que se estenderia pela floresta. Após três horas de intensos gritos e pancadas em árvores e pedras voltei exausto para a casa. O “homem das vacas” já estava por ali, tomando um chope e dando instruções para melhorar o braseiro. Os primeiros convidados começavam a chegar.

Não tive tempo de me lavar, logo me colocaram para tirar chopes e mais chopes para todos os que iam chegando. A cada jarra que tirava tomava um quarto, assim entrei a noite totalmente bêbado e tirando chopes até para quem não estava por lá. Às vezes alguém me trazia um pedaço de carne ou qualquer coisa para comer. Havia muitas pessoas, a maioria desconhecidas para mim. Bebi e continuei bebendo até que, como levado por um redemoinho, saí dali com uma caneca cheia, caminhei até a casa, lá encontrei uma pilha de sacos de arroz onde deitei meu corpo e derramei o último gole em minha boca.

Sons e aromas me chegavam embora eu não os pudesse arranjar em um quadro lógico. Estranhamente sabia, ou sentia, ou via de alguma forma diferente, todos os que iam e vinham pela casa e fora dela. Meu corpo totalmente inerte não respondia mais aos comandos de minha vontade. Tudo girava a uma velocidade vertiginosa e eu girava também. Girava minha mente indo e vindo como as pessoas. Sabia que me procuravam, ouvi dizerem meu nome, todos pareciam participar de uma grande brincadeira. Em determinado momento tentei avisa-los de que estava ali jogado sobre os sacos de arroz, mas meu corpo ainda não respondeu. Passarem-se alguns minutos antes que me encontrassem de boca aberta dormindo. Estranhamente estava dormindo, porém totalmente consciente do que acontecia. Via a todos embora estivesse de olhos fechados. Na verdade via a todos mesmo e inclusive a mim mesmo no centro da agitação totalmente desfalecido e roncando de boca aberta. Alguém teve a idéia de derramar uma caneca de chope em minha boca aberta garantindo que assim eu acordaria. De fato engasguei-me e acordei tossindo e colocando chope para fora pelo nariz.

Então fui arrastado até o tanque, pois eu era o único que ainda não o havia estreado. Jogaram-me dentro dele e quase arrebentei as pernas, pois não havia mais que trinta centímetros de água cobrindo o chão. Água gelada e cristalina que deixava refletir as estrelas, que refletia minha mente agora desperta. Como a noite que terminava aos poucos e as pessoas se foram até o amanhecer tardio.

Noite

Vou, não vou, vou, não vou. Vaivém desvairado me minha mente que não se fixa a nenhum ponto ou pensamento. Vertigem permanente ativando o enjôo que se transforma em náuseas como ondas indomáveis. A saliva que abunda e desce pela garganta seca. Cambaleio para fora da casa sinto o chão de terra batida caminho rápido tropeçando em tudo, tropeçando nas idéias. Um torrão de terra se desfaz sob meus pés e caio de encontro a terra seca. A poeira se levanta, meu estômago se contrai violentamente e em um urro visceral, primevo e selvagem sinto o líquido quente que sobe pelo esôfago queimando ácido. Vejo incrédulo o jato de líquido saindo de minha própria boca como se não fosse minha.

Gotejando suor e vômito permaneço de quatro arfando e esperando a próxima onda. Nova contração, novo grito, mais líquido quente queimando. E eu de quatro vomitando na noite escura. A cabeça ainda rodando, o corpo resfriando e os músculos retesados me fazendo tremer. Novo vômito, mais noite quente e líquido queimando. Antes do fim dessa outra contração e outro grito. Sinto-me um oceano de vômito fazendo com que as ondas expulsem o mal que se encontra em mim. Fazendo com que as ondas escavem a praia de meus desejos que escorrem pela terra feitos uma pasta disforme e fétida.

Param as contrações, a salivação cessou, resta um gosto amargo. Infinitamente amargo como a dor de uma ferida aberta na alma na noite dos tempos, talvez quando ainda era criança. Sento-me de pernas abertas e cabeça pendente, respiração entrecortada. Espantalho da noite deixando de pensar sentindo apenas que deveria me arrastar até um canto qualquer e me proteger para dormir. O sono com suas pesadas asas me arrastando para algum lugar que não quero. Isso é que é ressaca antes de acordar.