quinta-feira, maio 25, 2006

URBE - 4


12/02/1990

Olhando para o relógio cogitei se teria tempo de fazer tudo o que precisava. Além dos projetos que deveria terminar para o dia seguinte, as provas para corrigir, médias a calcular e ligar para ela que me aguardava para sair. Essas pequenas coisas que são apenas compromissos normais para pessoas normais e que me acuavam em meu canto por acha-las tão sem sentido. A idéia de executa-las tornava-se pensamento e eles se acumulavam girando em minha mente confusa e insegura. Não agüentando mais escapei pela porta da frente, ganhei a rua caminhando firmemente pela calçada molhada e senti a chuva que ainda insistia em cair. Existia? Pessoas correndo de um lado para o outro, impossível saber porque. Talvez se dirigissem, como eu, para alguma fila de um banco qualquer. Galguei os degraus de falso mármore entranhei-me nos meandros de filas do palácio dos falsos sonhos, suas portas de vidro e lustres de cristal.

As letras surgiram vermelhas no painel, uma após outra, A G U A R D E, após um sonoro sinal metálico. A fila composta por pessoas correndo atrás de seus sonhos pequenos ou grandes, brilhantes ou medíocres. Estranhamente andávamos em diferentes unidades de tempo, alguns impacientes outros calmos e tranqüilos e outros, ainda, indiferentes. Sonhos que compramos à noite quando descansamos em frente ao televisor. Telepartículas, fótons, partículas alfa, beta, mésons pi, uma mulher rodopia a dançar, uma criança grita e chora. Os papéis passam de mãos em mãos, mais sonhos de manhã. O número, também vermelho, 12 e novamente, A G U A R D E.

Take me down to the paradise city, where the grass is green and the girls are pretty, take me on ... I want ....... please take me on........ (Gun’s and Roses).

sábado, maio 13, 2006

URBE - 3

Sem data

Mais uma vez meu irmão iria partir. Vi-o partir e com lágrimas silenciosas percorrendo meu rosto pensei. Nossas raízes estão no vento, nos sonhos, nas aventuras, nos amores tardios, impossíveis, em cada partícula que nos compõe, meus irmãos. Somos um só, marinheiro, biólogo, executivo, e tudo o mais que quisermos ser nesta vida. Os segundos passam e ele vai decolar, e eu vou decolar, irei juntar duas partes de mim, estarei mais completo. “This is no time of celebration, this is no time of marching-bands, this is no time of politicians, is the time of the action” (Lou Reed).

As coisas vão e vêm, como o embate das ondas na areia da praia. Sempre igual mas modificando cada grão de areia que eleva por segundos na coluna d’água.assim os sentimentos fazem com meus pensamentos, eles se elevam na coluna de sentimentos e se modificam antes de assentar novamente em minha mente. Em meu vetor, corto os mares, corto os ares, vôo nas matas, nado nos sonhos. Atiro-me novamente à vida. Com grande perplexidade por existir olho a realidade como pela primeira vez. Relaxo, o cinto está firme envolvendo meu corpo, sinto a vibração dos jatos, mais uma vez. Tudo parece calmo agora. Somente tenho o esperar pacientemente, uma nova luta à frente, tempestade mar doze talvez. Quero tanto para meus pais, eles querem tanto para mim, só não sei como dizer, só não sabemos como nos dizer.

Paralelo 54 graus sul, o único futuro. Encontro com hora marcada, a procura do que perdi. Não importa que seja uma quimera, ou um moinho, transformado por minha mente doentia em um dragão. Partirei em seu encalço para encontrá-lo e empunharei minha lança para enfrentá-lo mais uma vez. Talvez o padre, lá na cordilheira quando o encontrar, me responda, sei que ele me espera, lembro-me quando se fez o elo.

quinta-feira, maio 04, 2006

URBE - 2


‘S


A cada rua um traço, a cada cruzamento um ponto, vários pontos uma cidade. Eletricidade e luzes hipnóticas. Pessoas que viviam, pessoas que habitavam. E a impossibilidade de uma vida normal, de uma vida natural, de crescimento e contentamento. Olhei para a planta, vi a borboleta que sugava pacientemente o néctar de suas flores. Os fluídos da natureza me envolviam na grande cidade. Não me lembrava de tudo o que aprendera. Quando ensinei procurei transmitir minha visão do mundo que nos cercava, mostrava outra realidade. Uma realidade paralela àquela aparente, uma realidade diferente do que podiam pensar oficialmente. Uma realidade que não dependia do partido político, de ser politicamente correto, não dependia da religião, classe social ou etnia. Uma realidade com seu próprio tempo, diferente do tempo de nossa sociedade.

Inserido nessa sociedade percebi a inutilidade de fazer o que quer que fosse sem ter em mente o resultado final. Abracei a falta de ambição a cada ato produtivo praticado, mantive minha grande farsa, não desisti. Procurei não desvendar nada e ignorar tudo o possível, descobrindo os componentes da natureza um a um nas entrelinhas do que nos impunham como realidade. Atingi, assim, a total ignorância, tornei-me um alienado para a sociedade. Com grande esforço e autodisciplina não me deixei padronizar por comportamentos adquiridos, soube o instante de retornar e desfazer os comportamentos adquiridos. Embriaguei-me com o vinho do fluir dos homens na grande cidade, seus passos, suas palavras, seus atos.

Acostumei-me aos desencontros propositais, à insatisfação e ao desprazer. Nos ensolarados dias as aves metálicas não cruzavam mais o céu, ou se o faziam era raro. Sons agudos perturbavam insistentemente minha mente. Uma mão se elevou cortando o ar a minha frente e tocou a carne com violência. O sangue jorrou quente e doce. Lágrimas e a ira e o grito contidos.

Não compartilhei meus pensamentos com ninguém, não tinha cúmplices ou associados em minha empreitada. Por medo e paranóia, evitei me expor à crítica, tornei-me agressivo e radical. Vivia em total confusão mental apresentando espasmos de descoordenação corporal e calafrios modais. O redemoinho interior sugou meu ser para o infinito. Paredes de vidro me cercavam, algumas folhas secas caíam e a tela fina e resistente que não permitia a saída, apenas respirar. Portas batendo, sons que me levavam de volta à realidade. A música se espalhando e o trepidar do pequeno compressor do aquário, sua presença próxima sem perturbar o ambiente.

Fugi para longe, evitei o contato com qualquer um. Não me aproximei de ninguém, não ouvi por querer me manter isolado. Um grito e minha corrida para a janela, meu olhar percorrendo a rua que se estendia abaixo para um lado e para outro. Ative-me a conceitos estabelecidos buscando a liberdade onde ela não existia. Em minha vida uns vinham e voltavam raramente, havia os que ficavam de forma permanente, outros nem sabiam de minha existência. Tentei lembrar com pormenores os sentimentos que voltavam à tona. Ri ridicularizando-me.

Observando a natureza intuí que as espécies e seus planos não se misturam, que há infinitos planos para cada espécie. Há, no entanto um plano que define a espécie tornando-a una. A maçã prestes a ser mordida não apresentava cor definida, mas me atraía prometendo conhecimento e saciedade. As correntes energéticas entrelaçavam-se e retinham o absurdo dos seres vivos no universo da matéria. Contra-mão energética organizando a energia desorganizada que emanava desse universo.

Parado frente à mesa hierárquica vi meu superior ameaçador olhando-me com insatisfação. A parede atrás de sua mesa portava dois quadros de navios cortando o azul do mar. E meu chefe começou a falar. Não vi senão o mar. Suas ondas tornavam-se mais calmas à medida que o navio se afastava, algumas gaivotas voavam displicentes, ouvi seus grasnidos. E meu chefe continuava a falar. O odor salino invadia-me as narinas confundindo-se com o suor doce que me escorria pelo rosto. E meu chefe percebeu que eu não o ouvia.

Entrando pelo estomago a voz autoritária de meu chefe trouxe-me lentamente de volta ao escritório, chamou-me à realidade. A parede dos quadros ainda ondulava quando voltei totalmente. O chefe nem tivera conhecimento de minha viagem, nossos universos sem dúvida não eram os mesmos, mas agora eu entendia que ele reclamava e me repreendia por um erro cometido. Pensei em perguntar-lhe se ele nunca tivera cometido algum erro em sua vida, mas achei que seria o suficiente para ele estourar de raiva, calei-me, mais uma vez, calei-me.

Depois do expediente entrei no ônibus distraidamente e desordenadamente, atrapalhando-me com as notas e moedas, paguei a passagem. Gritei e não ouvi. Pensei nas armas floridas tatuadas, nas mentes trituradas. Discuti com alguém a leveza do grande pássaro metálico, admirei seu rastro de destruição. A dor me fez relembrar as contrações. Quimiossintetizei, biodegradei e explorei exaustivamente o ambiente que me cercava para me manter.

As tradições atraíram os velhos e cansados de espírito com sua superficialidade, com sua clareza e seus incontestáveis dogmas. Destruí todas as imposições conceituais ao fim da noite e reiniciei sua reconstrução nas primeiras horas do novo dia. O uso excessivo da razão, não tão lógica quanto parecia. Vi no televisor quando o vendaval atingiu o auge e a destruição por ele provocada foi desoladora e maravilhosa. As ruínas e a agonia dos semelhantes. Perplexidade, horror e a angústia que persistia. Palavras que não paravam de fluir em absurda velocidade e simetria. A brasa na escuridão não iluminava o ambiente, mas o odor das ervas queimadas era perceptível.

A confusão mental imperou naquela manhã quando me pressionaram exigindo que tomasse uma atitude final. Sabia que estaria sujeito a mais uma frustração, somente mais uma, pensara. Caso contrário não pareceria economicamente viável. E mais uma vez o imprevisível eliminou, repentinamente, a pressão. A discórdia que levara a uma guerra em algum canto perdido do planeta me salvara. Preços subindo, produtos faltando. Lamentos pelas vítimas, sempre inocentes vítimas que insistiam em ser vítimas, que insistiam em morrer.

Voltei ao passado e relembrei minha vida vulgar, percebi que não me libertara. Naquele dia não cumpri nenhum compromisso, decretei um momento de parar o mundo em mim, apenas parar e não produzir. Desintegrei-me em meio às vozes companheiras não diferenciando sonho e realidade, deixei de sonhar por um tempo. Distrai-me com o vôo do pardal cruzando o céu da cidade, seu ninho no peitoril da janela, feito de fios e pedras. O peso se liquefez penetrando nas fendas do ser e se integrou às paredes do prédio encardido.