sexta-feira, junho 30, 2006

URBE - 7

26/11/91

Não sei realmente como cada fato isolado se encaixou. Se existiu um padrão ainda hoje não o encontrei. Abstraí a possibilidade de que cada um pertencia a uma esfera diferente, levando a infinitos possíveis encadeamentos. A cada contato entre as superfícies das diferentes esferas que parecia ver, podia ou não, concretizar-se uma realidade. Uma realidade diferente em forma, semelhante em ação e idêntica em essência. Assim a materialização de uma expressão espiritual parecia defasada temporalmente. A consciência de ser dava-se a partir da origem de um impulso cerebral. Esse impulso, era por sua vez, resultante da vontade espiritual, levando a uma interação com outras esferas.

Primeiro a ação, depois a recepção perceptiva, a seguir a associação dos estímulos e finalmente a cognição que permitia a reação. Essa defasagem temporal me fez refletir que a reação se dava em relação a uma ação que não mais existia no tempo real. Respondia com minhas ações a estímulos do passado em uma perfeita ilusão da realidade.

E essas esferas apareciam e desapareciam em minha visão interior. Não era a visão comum, não aquela que realizava com os olhos, era mais uma certeza de sentir de uma forma diferente que somente poderia se comparar à visão. Sem dúvida nesses momentos sentia que minha mente se despedaçaria em milhares de fragmentos que eu nunca mais poderia reunir. Então rejeitava o que sentia e percebia para poder me manter no mundo cotidiano, no mundo real.

quinta-feira, junho 15, 2006

URBE - 6

31/07/90

Oscilei com dúvida entre o anunciado e o real, a imaginação tortuosa tecendo tramas, evocando imagens e a realidade apresentando-se linear. Esquadrinhei o terreno à procura de um bar, noite fria, vento gelado, ausência nas ruas. Procurando estabelecer um ritmo, começo e fim de uma jornada inexistente, de minha mente que ansiava alguma posse vil.

A vi passar, o ondular de seu cabelo acompanhando o ritmo da melodia assobiada por aquele que entrava no bar, idêntica à ensaiada pelo dono do bar a instantes. Imagem real da virtual realidade das ruas desertas, silenciosas, cúmplices. O aroma de café do filtro de pano sendo lavado ao meu lado confundia-se com a imagem do vapor do banho-maria à frente. Essa mistura de sons e imagens lançaram-me a uma realidade paralela, presente nas brechas, nas sombras das paredes de um beco esquecido de um bairro tranqüilo.

O ruído do pedalar descontínuo do menino contrastava com o som cortante do jato que se deslocava a algumas centenas de metros acima de nossas cabeças. O cruzamento das ruas era a roleta-russa da vida monótona da cidade. Procurei os caminhos paralelos para fugir à multidão que se arrastava circunspeta, hipnotizada como todos os dias.

Havia alguém atrás, na frente ou ao lado, não sei. Parecia que me seguiam por algum motivo qualquer. Senti a paranóia absoluta de um ser quase esmagado pela opressão interna. Insegurança do que viria a ser. Não ser, desintegração da imagem há tanto adorada levando-me à quebra do padrão imposto. Olhei-me no espelho sentindo-me como um estranho, convidado a uma festa familiar.

sábado, junho 10, 2006

URBE - 5

Como em um dia qualquer esperei a chuva passar para sair de casa e pagar uma conta no banco. Sempre pagando contas, interminavelmente pagando contas. Caminhei entre a multidão que se deslocava em todas as direções. Cada um com sua hora marcada, cada um com seu atraso, cada um com sua derrota, cada um com sua vitória. Indo, voltando, atravessando ou apenas caminhando por caminhar. Passei pela padaria e tomei um café antes de seguir meu caminho.

Cheguei ao cruzamento ainda sentindo o gosto do café expresso, cada tragada que dava no cigarro ressaltava seu sabor. Parei esperando o sinal fechar e permitir que atravessasse a avenida. Olhei para baixo. A meus pés a poça de água da chuva me dizia que ela não passara totalmente, via suaves pingos caindo lentamente dispersos. Como um espelho deitado a poça refletia o prédio a minhas costas e as nuvens acima, imagem distorcida movendo-se a cada pingo.

A chuva, ainda se encontrava presente na cidade. Vi o carro que deslocou seu peso sobre o asfalto molhado, à minha frente. A vibração de seu rodar espalhando-se como uma onde pelo asfalto até atingir a calçada onde me encontrava. A roda esquerda dianteira atingiu a poça e de repente o tempo pareceu congelar-se, ou melhor, pareceu adensar-se e tornar-se mais lento. O espaço a minha volta também adquiriu dimensões diferentes expandido-se em uma luminosidade opaca. Senti que entrava em uma dimensão paralela que atraía toda minha atenção, toda minha consciência de ser. Os ruídos da cidade pareciam distorcidos como por efeito dopler mas diferente, chegavam a meus ouvidos vindo de longe.

A poça ganhou dimensões desproporcionadas aumentando de tamanho quando a olhei fixamente. Na verdade parecia que eu a via desde um ponto mais baixo do que meu campo de visão normal, como se estivesse deitado. Nessa nova perspectiva ela se apresentava como um lago a minha frente. No entanto também a via desde o ponto de vista normal, de cima como uma poça, como se estivesse em pé. Era como se eu fosse duas pessoas diferentes encerradas em um só invólucro perceptivo, em um só corpo.

Vi cada uma das fases da formação da onda provocada na poça. Pude discernir as gotas maiores que se destacavam de sua crista enquanto avançava em todas as direções antes de alojar-se em meus pés. O motor do carro que passava roncando alto como se fosse a fragmentação do céu, a realidade se rasgando. Ouvi também, como vindo de muito longe, os gritos de susto que emergiram do interior de duas mulheres que conversavam, distraídas, a meu lado, enquanto aguardavam, também o sinal para atravessar.

O tempo passou, o sinal abriu para nós, atravessei a avenida com uma estranha sensação que me acompanhou até o banco. Após a fila e pagar as contas saí do banco para a rua sentindo novos aromas na cidade. As nuvens se dispersavam, o sol forçava sua passagem através delas e a água de chuva espalhada pelos carros, pelos prédios, pelas escassas árvores, pelas ruas e pela calçada reluzia recebendo a luz do sol e criando uma nova atmosfera urbana.