sábado, outubro 28, 2006

URBE - 20

O FIO

A noite quente, muito quente, quente como em qualquer lugar. Naquela cidade uma rua, nessa rua um prédio, nesse prédio um quarto. No quarto alguém que rola na cama sem parar, lençóis enrolados. Às vezes pensava que era eu, muitas vezes não sabia. O som dos carros passando se espalhando pelas paredes. O som de alguém a andar no andar de cima, seus passos, móveis arrastados. Primeiro uma cadeira, depois levemente a mesa. As passadas firmes da fêmea na rua o som de seus saltos batendo na calçada ecoando pelo quarto e eu imaginando a cadência de seus quadris. Sons se misturando e cadenciando meu rolar pela cama, de um lado para outro como em um mar revolto sem fim.

Talvez um cigarro e a janela para acalmar. Com certeza novamente a cama e a escuridão. E a vida a passar sem parar, sem pensar, pensando tudo outra vez. Talvez o pensar.

E tantas páginas espalhadas pelo quarto sem um pensamento para as ligar. Por que teria que liga-las em uma só noite? Perguntava-me enquanto rolava. Talvez não pudesse esperar, talvez começara a pensar no futuro. O futuro. Não percebera quando havia ocorrido, mas o fato era que o passado não mais representava o meu problema principal. Minha memória tornara-se seletiva e estava lentamente reconstruindo meu passado a partir das experiências presentes. E o presente? Ilusão temporal. As imagens do pensar, imagenspalavrassímbolos, meu corpo a sentir, a responder e eu a olhar.

O amor que tantas esperanças me trouxera escorria pelas mãos e o tempo avançava implacável, ora lento, ora rápido, mas sempre avançava, insistia em avançar. Mas não seria por minha própria natureza? Pensava. Via-me ora feliz com muitas histórias para contar, ora infeliz com minha amargura para calar. E por que ser tão amargo se a vida não passava de uma ilusão de quem podia imaginar? Muitas eram as perguntas naquela noite, nenhuma ou poucas as respostas. Talvez e sempre talvez, nunca a certeza.

Não saberia por onde começar. Estava certo de que algum dia, em breve, chegaria aquele momento que previra quando criança. Aquele momento em que teria que tomar a única e grande decisão de minha vida. Não sabia nem mesmo de onde tirara tal idéia fatalista, finalista, determinista. Mas era um começo, sentia-me à beira de uma grande decisão, como sempre me sentira. Sentia uma tensão que me roubava o sono. Mas seria o sono tão necessário para quem está para morrer a qualquer momento como qualquer um de nós? Era a morte, ela a única certeza que me acompanhava. Era isso eu estava morrendo e o tempo se escoava. A cada dia menos tempo, a cada hora mais uma chance para minha companheira de vida me enlaçar com seus braços.

Num instante a imagem de um sorriso, o mesmo sorriso que me perseguia como querendo me dar a felicidade do mundo, a felicidade da vida, e eu como que a fugir de um predador atroz. Magoava o sorriso constantemente. E assim, quando menos esperava materializou-se o sorriso no corpo de uma mulher. Uma mulher cujo amor não teria encontrado jamais. Desde o instante em que a conhecera sabia que não a poderia contentar, embora fosse meu maior e único desejo. Prendia-me a conceitos e sentia-me inseguro ante o desconhecido. Na verdade tinha medo de fracassar, tinha medo de errar.

Gostaria de compartilhar as maravilhas da vida e com ela contemplar quantos dias me fosse possível. E as horas passavam lentas na noite sem sono e no bater constante do teclado. O rádio transmitia qualquer coisa de tal. Não saberia dizer quando tudo começou, apenas parecia não ter fim. E meus dedos deslizavam pelas teclas como sempre que queria pensar, o cigarro caído apagado como sempre, tudo como sempre e sempre, sempre.

Descendo pela rua escura desafiava meus próprios medos, como andando com os olhos fechados. Fornido não percebia a poça d’água que entrava pelo sapato. Sentia o formar de uma gota em meu rosto, só então percebi que chovia. E olhando a chuva, a chuva. E aquele raio que não vira, nunca mais. E a perspectiva futura, passada, presente. Colapso. Imagens. Ruptura. O fim. O fio.

sexta-feira, outubro 20, 2006

URBE - 19

OUTROS

Desprezei a inutilidade do não ter feito aquilo que queria, deixei tudo inexplicavelmente desfeito. O vento uivava feroz em minhas janelas, as luzes ofuscavam minha mente. Meu sofrer se resumia a pontadas rítmicas na altura da boca do estomago. Antes de ela chegar e entrar definitivamente em minha vida povoava minha mente com indescritíveis e fantásticos sonhos. A desejava sem a conhecer, idealizava-a como a mulher perfeita que eu acreditava que era. A partir da visão de seu corpo imaginei uma série de comportamentos camuflando a realidade de seu ser. Na verdade não a conhecia, nem mesmo a conheci depois de cinco anos juntos. Quando se cansou de mim e me deixou a cada palavra de amigos comuns descobria outra pessoa que não aquela com quem vivera.

Para meu alívio depois de partir deixou a certeza de que o pesadelo acabara. E quem criara o pesadelo não fora outro senão eu mesmo. Fantasiando uma mulher ideal não enxergava a mulher real que ela era. Em minha ingenuidade adolescente acreditava que eu estava certo de conhece-la. Interpretava seus atos sob um prisma de amante ingênuo que era incapaz de ver segundas intenções ou objetivos escusos. Não importava, agora que ela se fora o pesadelo criado por mim se desfizera e me libertara para a realidade crua do mundo.

Zero, zero, ambos pontos estão eqüidistantes de nada. Naquela noite eu percebi e fiz que não. Recordações, lembranças, passado ancorador, saudades. Peristaltear o cimento entalado na garganta, desamparado movimento de cuspir indiretamente para fora. Parar no boteco da esquina e tomar mais uma para suportar a noite solitária.

O dinamismo estático de meu comportamento social permanecia inalterável apesar de modificado. Quando entramos na igreja antiga o órgão emitia seu místico som e nos fazia duvidar. Buzinas externas interferiam no pensar tentando congestionar e poluir nossa possível religação ao divino. A magia e seus bruxos não tinham lugar nas crenças metropolitanas e judaico-cristãs. Para mim o inexplicável permanecia sem explicação e um outro dia começava com seus sons. A dissonância me levava a um estado perceptivo alterado como quando ingeria álcool ou outra droga qualquer.

Como descendente eu destruía, a cada novo comportamento adquirido, as tradições perpetuando dessa forma a luta milenar entre gerações, hoje era predador, amanhã seria presa. Deslizando pelo asfalto com meus tênis de borracha não tinha noção de minha velocidade, não ouvia o ressoar de meus passos. Ou ficava observando o cronômetro a cada minuto, ou a cada segundo, mas o tempo não passava. A escuridão propiciava a ilegalidade, a marginalidade. Quando os via em volta de alguém, minha cabeça se abaixava cúmplice ao passar e perceber de que se tratava, não olhava.

Quando entrei no beco escuro para cortar caminho quase me arrependi ao ver os olhos cegos que brilhavam na escuridão e não respondiam. Passei apressado a seu lado. Estava cansado de ouvir as rebuscadas e perdidas teorias sociais e políticas que eram proferidas nos salões esterilizados da academia. Não suportava o conservadorismo idiota quando eram tecidas as considerações ponderadas a respeito de novas idéias. Não suportava mais o equilíbrio da rejeição civilizada e acadêmica dessas idéias realizadas por aqueles que me diziam como deveria pensar e como deveria ser para alcançar o sucesso. Os inabaláveis dogmas que concretizavam uma realidade estatística de pesquisas impecáveis, imparciais e irrefutáveis pagas por aqueles que podiam.

Mergulhando na infinita espera do acontecer passavam os dias, gastava-se meu cronômetro. Indiscutível verdade aquela que não comprovava, pois residia dentro de mim e eu não sabia. Dizia que procurava sem cessar e nunca alcancei, nunca achei nada, nunca soube o como ou porque, nunca tive certezas. Quando me cansei de procurar minha já cansada e atrofiada percepção não captava mais a resposta próxima e evidente. Passava de um ato ao outro sem questionar. Tinha medo da verdade individual, tinha medo de minha verdade.

Apesar de sempre tentar me adaptar às novas condições sociais, como todo excedente, como todo desajustado, conscientizei-me de que sempre sobrava, de que não encaixava em nenhuma situação. E sentia-me assim apesar de ser aceito pelo grupo ao qual me adequava. Faltava-me uma engrenagem fundamental e não sabia qual era. A tendência seria melhorar, me diziam, mas a lascívia e a luxúria não me permitiam, sempre me entregava a mais um gole, sempre queria mais.

Certa noite tive um sonho longo, daqueles cuja sensação e clareza não nos abandonam durante dias. Sonhei que desde que nossos soberanos estados haviam sido destruídos reinara a ordem geral. A sociedade se multidividira atingindo a infinita individualidade. Cada ser era o que era e tinha uma função não ditada por lei. O ser humano descobrira sua verdadeira missão ou dever fundamental no planeta. Descobrira finalmente aquilo que movimentava e era causa de sua existência. Todo ser humano passou a considerar-se guardião individual da ordem da natureza planetária no universo. Para compreende-lo bastava-nos contemplar. Servíamos para contemplar e contemplávamos e crescíamos em paz e harmonia. E assim terminara o sonho. Acordei e enjoou-me o fato de não ser aquilo que desejaria ser.

Vítima de uma ou mais soterradas maneiras de fazer os futuros alguém caminhava, falava e trabalhava sem pensar em que. Surpreendi-me e lamentei tristemente ao perceber que esse alguém era eu. Deu-me náuseas perceber que me observava como se estivesse fora e dentro de mim. Mareado lancei os braços ao chão para atenuar o impacto de meu corpo ao cair e voltei a andar de quatro o que me dava mais base que andar de pé. Compreendi que a forma não existia sendo rígida e passei a criar novas formas e fazia isso enquanto permanecia deitado de lado no chão. Criava e destruía, não me fixava a nada, pois pensava que poderia ser fatal. Tinha em minha obra a lição, não me bastava, não era nada, gostaria de tê-lo conhecido.

sexta-feira, outubro 13, 2006

URBE - 18

Paralelo 54º S

Naquela sala escura não pensava, não pensava, deixara-me à deriva. Meu corpo protestava. Esquecera. Não, não esquecera, lembrara-me como nunca poderia pensar. O trem passou por uma janela como um corpo qualquer. Poderia ser uma pedra. As janelas tremeram, senti a vibração no cimento quente. Peristáltica agonia interminável. O tempo que antecede a ação, o tempo, agora.

Gostaria de tê-la visto, mas o tempo não permitiu. Não o tempo absoluto inexistente. O tempo dos homens sim. Permiti-me chamá-lo assim. É de tempos em tempos que se perde o tempo que não existe. E a existência desaparece em acelerado tempo.

Vermelho era seu planeta em qualquer lugar. Via-me tal e qual me reproduzira certa vez diante do espelho. Vibrava meu olhar por atravessar o espelho espesso da consciência. Admirava seu andar a cada requebrar. Sentado à mesa do bar representava o papel que me fora entregue ao nascer, acreditava-me incapaz. Hora sim, hora não. E sonhava, sonhava e sonharam. Vez por outra um navio, outras simplesmente a andar.

Outrora ouvira sem pesar tudo o que passara, o som ardente que me alertava a mente. Passava os dias a contar os dias. Não os dias de um ciclo natural, os ponteiros do relógio ou os números do digital, contava os dias de minha mente. Sempre iguais, mas diferentes, deixava-os passar. E por enfrenta-los, senti-me tão diferente e por demais igual. Contemplei a lágrima incandescente da tinta de seu olhar.

Pensando às noites virava-me entre o suor e os lençóis enrolados em minhas pernas. Pela parede via os carros a passar, mas só os via quando passavam. E por não passar fiquei parado deixando para trás o futuro. O deserto desolado, árido, rude. Vesti-me às pressas, às avessas. Paralelo 54º Sul, limiar da vida, renascer da morte. E para quem fica o inferno ardente e o grito eterno a ecoar na mente, a vibrar pelo corpo e me fazer suar nas noites frias. Sem tremor, sem sofrimento. Ácido corroendo a cada manhã e o derreter lento em meio ao asfalto. Era como gritar e não ouvir.

Passei a cogitar se ela gostaria de um diálogo franco e aberto, mesmo que não a pudesse esquecer. Eu mesmo não sabia se gostaria de ter esse diálogo. Não queria que ela sentisse frio no inverno da noite dos tempos. No entanto passava os dias a tremer dizendo que uma forte fadiga me faria esquecer.

segunda-feira, outubro 02, 2006

URBE - 17

TENTO

“Preços, preços, apenas preços, tudo tem seu preço. Compre, compre tudo que se compra. Tempo, tempo, circulus paratus. Percorre o tempo que o preço compra e comprova que pelo menos tento”.

E fora assim que vagando pela rua deserta o louco ziguezagueou seu tempo. Hora chovia, hora fazia sol, às vezes ventava. Frio calor e não sei mais o quê. Assim ziguezagueava o louco pela rua vagando seu tempo deserto. “Advertência, advertência, cuidado com a chegada do tempo”. E de rebuscadas formas não explicava nada. “Confuso, confuso quo pele tenos mento”, dizia em voz alta. Rádio sinal de um emissor vindouro. “Páquetnas para a lua ventro”, gritava pelas ruas desertas. E não se entendia o que dizia. Eu nem pelo menos tento.

A velha senhora estava encostada no muro com falta de ar e desamparada. Suas roupas impregnadas pela fuligem invisível da cidade. Velhas vestes fora de moda reaproveitadas. Percebia-se por seu olhar que a verdadeira causa de seu mal-estar nada mais era que a imensa ansiedade de se encontrar totalmente só na grande cidade, sem ter a quem recorrer. Policiais a abordaram quando ela agitava suas mãos pelo ar em silenciosa súplica. Um deles, revista à mão, pôs-se a falar, enrolava a revista o mais que podia apertando-a com as mãos. A conversa fora confusa até a chegada da enfermeira que a segurou gentilmente pelo braço colocando-a dentro do carro vermelho. Foram-se também os policiais, a janela agora vazia.

A sirene surgiu cortante por entre os carros, algum vazamento de gás, seguiu veloz. A criança olhava desatenta pelo teto solar do carro, alguém a buzinar. E a cidade acelerava seu ritmo prenunciando a chuva. Mais trade a água a cair dos céus, o incenso a queimar. E o retorno pareceu-me familiar apesar do longo tempo de relaxamento. Mexer os dedos dos pés, das mãos, torcer a cabeça, espreguiçar. De novo cada célula de meu ser parecia ressaltar o ato de estar consciente. Mais ágil a mente parecia deslizar. Idéias e dedos pareciam se conjugar numa torrente de palavras formadas quase sem parar. A cidade tornou a crescer e eu escrevia freneticamente.

Sentei-me na esquina como se não tivesse nada a esperar. E esperar o que nessa cidade onde tudo acontecia sem parar. Já não se tinha mais o que pensar, agir. Velhas palavras voltavam a rondar.