URBE - 23

MARTE
Deslizei lentamente pelas ruas semidesertas da noite, perseguindo um pombo com o olhar, fitava sua cauda. Caminhava sem me lembrar direito de onde vinha, sabia que ia para casa, precisava chegar e dormir. Andando no silêncio da noite fui surpreendido por uma onda sonora repentina de alguém que gritava e dizia:
__ O caralhooooooooo!!!!! Eu te matoooooooo!!! Eeeeeu quebro tua cara!!!!
__ Bom aí eu disse: “Peraí ô malandro, eu num to aqui pra brigá!”
__ Foda-se!!!! O filho da puta tem casa, ele tem casaaaaaa!!!
__ Ele tem casa, por que o filho da puta não vai pra lá???
__ Ele tem roupa, comida, cigarroooo!!!
__ Filho da puta, eu matooooo!!!
__ AAAAAAAHHHHRRRRRRGGGGG!!!!
Da mesma forma que chegara o som de sua voz sumira quando o homem, com suas vestes rasgadas e encardidas, passou e continuou gesticulando e descarregando sua ira pelas ruas da cidade. À distância sabia que estava gritando, não o que. Bêbado, louco? Agora restavam somente os pinheiros em meio às cruzes do cemitério e um pássaro cortando o horizonte aqui e ali.
Aos poucos comecei a lembrar o que fizera antes de encontrar o bêbado ou louco a gritar. Estivera com Karen, acompanhei-a até a porta de seu prédio depois de passar algumas horas caminhando e conversando com ela. A garoa espessa caía lentamente. Beijei-a ternamente e caminhei sem olhar para trás. Tomei meu rumo. Pelo vidro do bar avistei uma cerveja que me chamava. Entrei e bebi solitário. Não tinha a mesma certeza de mim que tivera no começo do dia. Refiz a análise de meu ser impelido pelo álcool, paguei e sai cambaleante. Em um poste urinei, chutei algumas latas e molhei os pés.
Enquanto pensava cheguei a uma praça, acendi um cigarro e contemplei suas luzes, a cidade. Passei pela galeria aberta e contei os corpos que se amontoavam entre papelão e panos como fazia todas as noites que passava por ali. Loiras, morenas, mulatas, caucasianas e asiáticas prostitutas andavam lenta e sensualmente à beira do asfalto tornando-se evidentes, esperavam. Eram apetitosamente evidentes para mim. Como caçadoras, esperavam com sua paciência infinita. Eu olhava, temendo-as, adorando-as, desejando-as ardentemente.
Um tiro, não muito distante. Outro e outro mais, um grito. Luzes alucinantes passando junto à sirene mântrica, caso encerrado. Não importa adivinhar o que, coisas da cidade.
Tantas ruas que levavam a tantos lugares. Como saber qual escolher? A faixa verde entre meus olhos. Em minhas narinas penetrou a areia, meus dentes a morderam sem querer. Ardia o fogo atrás da fábrica, pelas chaminés a fumaça, operários na periferia. A graxa mantida em poças. O carro foi guinchado, seus ocupantes transportados. Meu olhar se perdeu na avenida. O esgoto engolindo meus sonhos a cada manhã. Preços altos, baixos, médios, oraculares. Tudo tem um preço, tudo tem uma verdade. Terei eu um preço e uma verdade?
Peguei o ônibus, antes o táxi, antes ainda o elevador, sistema de transporte integrado. Desci e a decepção frente à porta. Caminhei até a avenida, pedi carona. Camburão, ambulância, carros, motos. Parou o caminhão, pulei para dentro. O papo, dentes cariados, olhos tristes, nossos sorrisos forçados, temporários. Saltei ao chão em uma parada e agradeci pela carona e pela volta à realidade. Corri pela grama, desci um barranco firmando a mochila a minhas costas. Atravessei o prédio e vi por entre a mata que se abria após o concreto, o alaranjado, avermelhado, acinzentado, enegrecido e azulado entardecer da cidade. Ali parei e contemplei.
Continuando a caminhar no início da noite vi na avenida o vidro misturado ao coágulo pisado no asfalto. E essa louca gana pela grana que não me deixava nem ao menos sonhar ou dormir.
Voltaram a cair as folhas transparentes de meu jornal, minha sabedoria. Acompanhava-a por todos os lugares, não interferia, apenas observava, como um espectro, apenas observava. Sem saber ou compreender, nem mesmo tentar. Por ruas, avenidas, becos e escadas. E a boca a me dizer muito além dos olhos vazios dela. Escorreguei a cada passo no chão molhado procurando o ilusório equilíbrio que perdia ao passo seguinte. E aquela melancólica caminhada sob a chuva, a conversa vazia, a falta de conclusão. Ela não me queria, mas não me dizia e eu queria ouvir.
__ O caralhooooooooo!!!!! Eu te matoooooooo!!! Eeeeeu quebro tua cara!!!!
__ Bom aí eu disse: “Peraí ô malandro, eu num to aqui pra brigá!”
__ Foda-se!!!! O filho da puta tem casa, ele tem casaaaaaa!!!
__ Ele tem casa, por que o filho da puta não vai pra lá???
__ Ele tem roupa, comida, cigarroooo!!!
__ Filho da puta, eu matooooo!!!
__ AAAAAAAHHHHRRRRRRGGGGG!!!!
Da mesma forma que chegara o som de sua voz sumira quando o homem, com suas vestes rasgadas e encardidas, passou e continuou gesticulando e descarregando sua ira pelas ruas da cidade. À distância sabia que estava gritando, não o que. Bêbado, louco? Agora restavam somente os pinheiros em meio às cruzes do cemitério e um pássaro cortando o horizonte aqui e ali.
Aos poucos comecei a lembrar o que fizera antes de encontrar o bêbado ou louco a gritar. Estivera com Karen, acompanhei-a até a porta de seu prédio depois de passar algumas horas caminhando e conversando com ela. A garoa espessa caía lentamente. Beijei-a ternamente e caminhei sem olhar para trás. Tomei meu rumo. Pelo vidro do bar avistei uma cerveja que me chamava. Entrei e bebi solitário. Não tinha a mesma certeza de mim que tivera no começo do dia. Refiz a análise de meu ser impelido pelo álcool, paguei e sai cambaleante. Em um poste urinei, chutei algumas latas e molhei os pés.
Enquanto pensava cheguei a uma praça, acendi um cigarro e contemplei suas luzes, a cidade. Passei pela galeria aberta e contei os corpos que se amontoavam entre papelão e panos como fazia todas as noites que passava por ali. Loiras, morenas, mulatas, caucasianas e asiáticas prostitutas andavam lenta e sensualmente à beira do asfalto tornando-se evidentes, esperavam. Eram apetitosamente evidentes para mim. Como caçadoras, esperavam com sua paciência infinita. Eu olhava, temendo-as, adorando-as, desejando-as ardentemente.
Um tiro, não muito distante. Outro e outro mais, um grito. Luzes alucinantes passando junto à sirene mântrica, caso encerrado. Não importa adivinhar o que, coisas da cidade.
Tantas ruas que levavam a tantos lugares. Como saber qual escolher? A faixa verde entre meus olhos. Em minhas narinas penetrou a areia, meus dentes a morderam sem querer. Ardia o fogo atrás da fábrica, pelas chaminés a fumaça, operários na periferia. A graxa mantida em poças. O carro foi guinchado, seus ocupantes transportados. Meu olhar se perdeu na avenida. O esgoto engolindo meus sonhos a cada manhã. Preços altos, baixos, médios, oraculares. Tudo tem um preço, tudo tem uma verdade. Terei eu um preço e uma verdade?
Peguei o ônibus, antes o táxi, antes ainda o elevador, sistema de transporte integrado. Desci e a decepção frente à porta. Caminhei até a avenida, pedi carona. Camburão, ambulância, carros, motos. Parou o caminhão, pulei para dentro. O papo, dentes cariados, olhos tristes, nossos sorrisos forçados, temporários. Saltei ao chão em uma parada e agradeci pela carona e pela volta à realidade. Corri pela grama, desci um barranco firmando a mochila a minhas costas. Atravessei o prédio e vi por entre a mata que se abria após o concreto, o alaranjado, avermelhado, acinzentado, enegrecido e azulado entardecer da cidade. Ali parei e contemplei.
Continuando a caminhar no início da noite vi na avenida o vidro misturado ao coágulo pisado no asfalto. E essa louca gana pela grana que não me deixava nem ao menos sonhar ou dormir.
Voltaram a cair as folhas transparentes de meu jornal, minha sabedoria. Acompanhava-a por todos os lugares, não interferia, apenas observava, como um espectro, apenas observava. Sem saber ou compreender, nem mesmo tentar. Por ruas, avenidas, becos e escadas. E a boca a me dizer muito além dos olhos vazios dela. Escorreguei a cada passo no chão molhado procurando o ilusório equilíbrio que perdia ao passo seguinte. E aquela melancólica caminhada sob a chuva, a conversa vazia, a falta de conclusão. Ela não me queria, mas não me dizia e eu queria ouvir.

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