sexta-feira, dezembro 23, 2005

ARCEBURGO - 4

– 08/07/85 – segundo dia –

Dia

Era madrugada, momento em que a noite está mais escura, um frio cortante penetrava pela janela, poucos sons se ouviam. O ruído de metal contra metal e em seguida um mugido, logo outros mugidos e então um grito anasalado, agressivo, autoritário e repetitivo alongou-se na escuridão “Vããããããcaa!”, “Vãããããcaaaa”. Era hora de acordar, as vacas estavam sendo levadas para o curral. Podia ouvir o roçar de seus corpos na folhagem da floresta seus cascos batendo no chão a cada passo. Podia até mesmo distinguir um bezerro com seu mugido infantil e seus passos mais leves. E novamente o grito “Vããããcaa!”.

Hora de levantar, vesti rapidamente a roupa do dia anterior, passei pela cozinha, ateei o fogo que se abriu em uma chama amarelada projetando minha sombra pela cozinha. Tomei uma caneca grande de água e a enchi de novo saindo para ver a noite. Sentei na escada da porta da cozinha e enrolei meu primeiro cigarro enquanto contemplava as estrelas do céu de inverno. Os sons vindos da cozinha me disseram que o dia começava, Mara saiu para pegar o leite no curral e Marcelo veio para fora para começarmos mais uma vez a regar as mudas frutíferas. Começamos a mil, Mara voltou e preparou somente café que tomamos enquanto limpávamos e afiávamos nossas ferramentas.

Saímos para o córrego carregando ao ombro as ferramentas. Eu sentia a pressão dos cabos da enxada, do enxadão e da foice e mudava as ferramentas de um ombro para o outro, as mãos ainda ardendo o suor começando a descer pelo pescoço. A neblina fina cobria as partes mais baixas do terreno e o frio se fazia sentir na brisa suave que nos acariciava. Trabalhamos mais uma vez até as onze da manhã quando Mara nos chamou, mais uma vez batendo a panela.

Tomamos o café, reunidos mais uma vez, e novamente retomamos o trabalho repetindo a jornada do dia anterior. Víamos lenta e progressivamente a paisagem mudando sob o impacto de nossas ferramentas e sentimos a satisfação que o homem do campo tem ante seu trabalho realizado. As pilhas de capim se alinhavam conforme escavávamos as touceiras. O cheiro da terra fendida se elevava quente espalhando-se por meu rosto. O sol dispersava a neblina fina e ardia sobre nós e nossas ferramentas não paravam. E assim passamos vários dias repetindo nossa nova rotina de trabalho.

Noite

Ao cruzar uma rua, estrada, não saber ao certo. Ao olhar para trás sem querer parar, pode haver ou não alguém a acenar. Se em dita estrada ou rua, seja de asfalto ou terra, podemos, ao olhar novamente para trás, enxergar a poeira que envolve quem ficou a acenar como um sonho de infância, distante, mas intocado, talvez possamos vislumbrar um pouco de nossa essência perdida. Sentir a solidão de quem parte que só aumenta ao ver quem acena abraçado pela poeira da estrada que mais e mais nos distancia.

E um sorriso estranho a chamar como se fosse um pranto a proclamar a solidão extrema à que renega esta dócil raça chamada humana seus semelhantes às vezes por não poder falar, às vezes por não poder fazer, quase sempre por não concordar. Raça tal que solenemente decretamos aos brados cada vez que vemos uma pomba morta a apodrecer ao lado da sarjeta banhada pela água suja e fétida que escorre pela porta metálica de um bar fechado.

sábado, dezembro 17, 2005

ARCEBURGO - 3

– 07/07/85 – primeiro dia –
Dia

O cansaço da viagem da noite anterior ainda persistia em meu corpo. O sol ainda levaria algumas horas até se apresentar inundando a natureza ao redor. Saí do saco de dormir a um canto do cômodo que servia também de sala. Troquei-me rapidamente na escuridão. Ouvia o som dos utensílios na cozinha e a conversa baixa de Marcelo e Mara. Esfregando o rosto e me espreguiçando entrei na cozinha para o primeiro bom-dia em nossa pequena comunidade.

Mara prontamente pegou a chaleira grande e rumou para o estábulo de nosso vizinho onde pegaria o leite para o café da manhã. Tomei uma grande xícara de café enquanto conversava com Marcelo acertando o que faríamos naquele primeiro dia. Já despertos começamos então a executar a primeira tarefa do dia. Fomos até o poço, joguei o balde ao fundo e o puxei para cima pela corda cheio de água. Despejei a água em um balde que Marcelo segurava e joguei novamente o balde ao fundo do poço para puxar mais água. Enquanto isso Marcelo corria com seu balde para regar a primeira muda frutífera no recentemente plantado pomar.

Quando Mara chegou estávamos suados e na metade do trabalho de regar as mudas. Ela começou a preparar o café da manhã. Quando terminamos eu e Marcelo pegamos as ferramentas, enxadas, enxadões, foices e facões, os afiamos e partimos para nossa primeira tarefa no campo. Os primeiros raios solares iluminavam fracamente o céu, a névoa que cobria os vales começava a se dissipar. Essa claridade nos permitia observar o relevo local e traçar nossa estratégia de trabalho enquanto percorríamos o leito seco do córrego que cortava a propriedade.

Capim narpiê cobria várias partes do leito do córrego e, além de sugar a pouca água, formava barreiras que impediria o fluxo de água quando resolvêssemos o problema da represa feita pelo dono anterior da propriedade. Começamos a trabalhar em touceiras diferentes de capim, usando primeiro as foices para limpar o terreno e ter uma melhor noção de como fazer. A seguir ouvia-se nossa respiração pesada, o som do enxadão penetrando na terra e nossos abafados gritos de força. Assim destocamos as duas primeiras touceiras de capim narpiê e terminamos banhados em suor. As primeiras bolhas apareceram nas mãos.

Foi quando ouvimos um bater de panelas e o grito de Mara que nos chamava para o café da manhã. A mesa farta com variados alimentos macrobióticos, estranhos para mim. A luz do sol entrando pela janela aberta refletindo-se em tudo e o cheiro da lenha queimando no fogão a um canto criando uma atmosfera quase de sonho, irreal de tão real e diferente. Comemos inebriados com a luz e os sabores, a conversa animada, palavras cheias de expectativas.

Terminamos o café da manhã e deitamos por alguns minutos no chão frio da sala. Não chegamos a cochilar, apenas deitamos e relaxamos até o sono começar a querer nos invadir. Quando sentimos o peso do sono saltamos em pé e nos preparamos novamente para continuar nosso trabalho com o narpiê. Limpamos e afiamos nossas ferramentas e partimos para o córrego seco. Eram nove horas da manhã, estávamos em pé desde as quatro e trinta.

Trabalhamos duro por toda a manhã, o sol foi tomando uma posição cada vez mais vertical. As batidas cadenciadas, o suor em profusão, os músculos se contraindo e a touceiras caindo uma a uma e formando um desenho ordenado quando as amontoávamos para depois carregar até a composteira.

Às quatorze horas o som da batida na panela nos avisou que o almoço estava pronto. Nessa altura do dia estávamos como que hipnotizados pelo trabalho braçal constante. As enxadas subindo e descendo em um ritmo próprio, alheio a nossos corpos, a nossa vontade. Paramos e olhamos em direção à casa solitária no meio do campo. Suas paredes brancas refletiam a luz do sol de inverno acrescentando um estranho matiz. O suor colando nossas roupas a nossos corpos, as mãos doloridas, os músculos contraídos.

Juntamos nossas ferramentas e caminhamos satisfeitos e famintos rumo à casa. Mara nos aguardava com um delicioso e belo almoço macrobiótico. Senti falta da carne vermelha e dos carboidratos costumeiros. Por outro lado a beleza estética da comida realçada pela luminosidade de inverno e associada aos aromas que emanava estimularam meu apetite. Comemos inicialmente em silêncio, até percebermos o quanto estávamos famintos pelo primeiro dia de trabalho árduo. Rimos de nossa condição.

Após o almoço e um delicioso café moído na hora, me sentei no batente da porta da cozinha, enrolei um cigarro e entre uma tragada e outra observava minhas mãos e as bolhas que nelas se formavam deixando-as doloridas. Foi então que chegou nosso vizinho das vacas. Sorriu com seus dentes exageradamente brancos destacando-se em seu rosto escurecido pelo sol, pelo frio, pelo calor, pela sucessão de estações exposto ao clima implacável. Perguntou como iam “os meninos da cidade”. Riu ao ver minha expressão enquanto eu contemplava minhas mãos em bolha.

Minhas mãos não se abriam totalmente devido às bolhas e à dor. Pareciam as garras de um falcão em vôo, inúteis, incapazes de segurar qualquer coisa. Me disse que a única maneira de curar as bolhas e a dor seria mergulhar minhas mãos em água com sal grosso. Ingenuamente coloquei água em um balde, peguei um punhado de sal grosso e misturei à água. Em seguida pus minhas mãos na salmoura e as abri de uma vez. A onda de dor que se seguiu percorreu meu corpo até se alojar em meu rosto deixando-o, primeiro vermelho, depois branco.

Gritei de dor. Um grito visceral, um grito rouco. Depois olhando para o “homem das vacas” disse com os dentes cerrados “Isso dói!”. Ele riu às gargalhadas batendo com as mão calejadas em seus joelhos, jogou seu chapéu ao chão e bateu com os pés ao redor sem parar de gargalhar. Marcelo e Mara também gargalharam e diziam não acreditar que eu tivesse feito aquilo, diziam que eu deveria ser louco ou tolo demais. O fato é que após a dor intensa que me fez lacrimejar ficou apenas um ardor constante, latejante, nas bolhas arrebentadas. As lágrimas secaram e nem chegaram a escorrer.

Saímos com as ferramentas novamente para atacar as touceiras de narpiê e o “homem das vacas” nos acompanhou para verificar se o trabalho se justificava e se nós estávamos fazendo tudo certo. Chegamos a nossas touceiras e começamos a trabalhar. Os enxadões subiam e desciam com força dilacerando em sua descida a terra ao redor da base das touceiras. O “homem das vacas” sorriu e balançou a cabeça ao nos ver trabalhar. Disse que dessa forma machucaríamos a terra e nossas mãos. Aplicávamos a maior força na descida dos enxadões quando deveríamos aplicar força menor para evitar o impacto exagerado. Mostrou-nos como deveríamos fazer e nos fez praticar em terra mais macia próxima ao leito do córrego. Quando se satisfez com nosso desempenho sorriu como um mestre benevolente e se despediu deixando-nos trabalhar.

Exceto por algumas paradas minhas para fumar um cigarro enrolado na hora, trabalhamos sem parar até vermos o sol querendo tocar o horizonte. Juntamos nossas ferramentas e voltamos para a casa onde Mara trabalhava, já preparando o jantar. A luz oblíqua do sol inundava tudo ao nosso redor. A fumaça saindo pela chaminé descia para o chão e tornava-se prateada quando tocada pelos raios dourados do sol. O cansaço e a imagem da paisagem que se espalhava a nossa frente nos transportou a uma realidade paralela, quase de sonho.

Nos sentamos à porta da cozinha olhando o por do sol e começamos a limpar e afiar nossas ferramentas para o trabalho do dia seguinte. Quando terminamos fui me dedicar a alguns momentos de solidão treinando um pouco de karate para relaxar os músculos. Marcelo e Mara foram desfrutar de seu momento de solidão juntos. Cheguei à borda da floresta que havia atrás da casa e em um descampado ideal comecei meu treino à luz do sol poente.

Uma hora e meia depois eu voltava banhado em suor para a casa. Marcelo e Mara olhavam abraçados na porta da cozinha, o sol mergulhando no horizonte. Peguei uma muda de roupa, uma toalha e sabonete. Fui até o poço a uns dez metros da porta e, olhando também o crepúsculo, comecei meu banho de balde. A água estava muito fria apesar do calor do dia. Ao virar o primeiro balde sobre a cabeça senti as agulhadas percorrendo meu corpo. Minha respiração aumentando seu ritmo e os músculos se retesando mais uma vez. Banhei-me enquanto eles me olhavam como acompanhando um ritual. Na verdade eu me sentia realizando um ritual. A cada balde que derramava sobre minha cabeça sentia que a água levava as toxinas acumuladas em minha pele, as toxinas acumuladas em minha mente. Clareava meus pensamentos até deixa-los parados.

Concluído o banho me vesti e juntando-me a eles para admirar o mergulho final do sol no horizonte. O frio e os novos sons da natureza nos indicaram que era hora de entrar e nos prepararmos para jantar. Sentei-me à mesa da cozinha para ler. Mara brindou-me com uma deliciosa xícara de café. Marcelo se entregava ao planejamento dos trabalhos nos dias seguintes estabelecendo metas em função de nosso desempenho. Acendemos as lamparinas. Elas eram formadas por uma rolha circular com um pavio curto saindo de seu centro flutuando sobre óleo. Estrategicamente colocadas combinavam sua luminosidade com a da lenha queimando no fogão e nos aconchegavam na cozinha.

Pronto o jantar nos sentamos juntos à mesa e entre pratos e garfadas conversávamos animados pelo trabalho já realizado planejando o que faríamos a seguir. Marcelo indicava seus planos para os próximos dias. Mara detalhava os seus para podermos ajudar. Eu opinava e dava meus conselhos assumido tarefas com os dois. Terminamos de jantar e enquanto Mara e Marcelo lavavam a louça eu escrevia uma carta, como um diário, para Fátima. Ainda não sabia o que significava o que sentia por ela e essa empreitada parecia servir para consolidar se eu ficaria com ela ou não quando voltasse.

Depois de muito ler e escrever tomando o que restava de café fui deitar meu corpo cansado. Marcelo e Mara há muito já descansavam conversando entre eles e comigo através do teto sem forro. Deitei-me e senti o chão duro de encontro ao meu corpo, os músculos se relaxando. Continuamos a conversar deitados em quartos diferentes até que por completo adormeci.

Noite

Naquele dia, em que, em vez de virar à direita o fiz à esquerda, não encontrei ninguém que podia ou conhecia para conversar da vida ou de minhas tias e segui direto para a casa fria encontrando atrás da porta fina a carta de alguém que há muito não via e não tinha ao certo a lembrança de ter conhecido nessa pouca vida. A cada linha lida aumentava a certeza de não a ter conhecido. Aumentava também a certeza de que ela não me conhecia. Parecia uma carta aberta por engano, poderia ser para meu vizinho ou um estranho.

Surpreendia-me a distorção que o tempo e a distância trazem. Pessoas que conhecemos, com quem convivemos se tornam totalmente estranhas, tornam-nos mais estranhos ainda. Profundo sentimento de estranheza nos produz quando alguém nos descreve como não somos. Como não somos ou como achamos que não somos. O personagem que construímos para nós mesmos nem sempre coincide com o personagem que os outros observam a vagar pelas ruas vivendo. Criamos um personagem que não conhecemos e que adquire vida própria independente de nossa vontade ou intenção.

Os mitos são piores, pois os vemos muito além da humanidade. Mitos não defecam, não urinam e muito menos morrem. Nunca vi um mito comendo ou escovando os dentes após uma refeição. Presos em sua perfeição destroem a magia quando se apresentam como humanos ante os admiradores. Não há palavras, atos ou odores que desfaçam a imagem do mito. O mito é um perigo interno, alojado nas mentes mesmo daqueles que não os conhecem. Malditos símbolos jungianos que nos atormentam os sonhos que nem sequer chegamos perto de decifrar.

segunda-feira, dezembro 12, 2005

ARCEBURGO -2

– 06/07/85 – a chegada –

Dia

Após horas e horas da esburacada estrada de asfalto solitária à noite entramos à direita por uma estrada de terra batida secundária, depois novamente à direita por uma rua de acesso que mais parecia uma trilha de tração animal. Chegamos assim à primeira porteira de madeira. Descer abri-la, esperar a passagem da perua, fecha-la, subir novamente.

A escuridão era total e apesar do inverno o frio não parecia nos afetar. Os faróis da perua atraíam os insetos que voavam atravessando-os, atrás deles apareciam vez por outra um curiango ou um morcego. Os odores dos campos e dos currais chegavam a nós em lufadas ocasionais de um vento lento, quase denso. O Tempo parecia adquirir características próprias dilatando-se ou contraindo-se independente de nossa percepção ou vontade.

Cegamos finalmente ao sítio após mais algumas porteiras, essas de arame farpado. Paramos a perua próximo à casa e começamos a descarregar as coisas levando-as para dentro. Amanheceria em poucas horas. Mara acendeu o fogão a lenha e começou a preparar alguma coisa simples para nos alimentarmos e descansarmos da longa e cansativa viagem.

Noite

No início os dias longos, com o correr do tempo os mais curtos e o fim do que parecia ser demais. O fervilhar da mente que ansiava ou espreitava o acontecer futuro. Muitas eram as cores poucas as origens. Insistia como que me arremessando contra um muro de cabeça, a cada dia em que tudo podia ser como o planejado ontem. Predizendo a morte e a vida, ou quem sabe o corte da navalha fétida, ou a virada repentina naquela esquina mágica.

O triângulo místico que se desdobra em quadrado sem se perder e faz do três sete, quatro mais três, capturando as linhas do universo que me permitem crer. A realidade construída a cada dia e reconstruída ao acordar. Reafirmando as certezas que tenho daquilo que é real. Sete mais três, o dez perfeito em harmonia una com o divino eterno, seja um deus barbudo e sábio, ou uma luz incorpórea superior e criadora. Noites sem fim me arremessando de cabeça contra um muro.

domingo, dezembro 04, 2005

ARCEBURGO - 1

– 05/0785 – a partida –

Dia

Arrumei minhas coisas para partir pensando em Marcelo e Mara. Eles eram meus colegas de faculdade que haviam se tornado muito meus amigos após alguns anos de convivência estudantil. Fora uma amizade natural, suave nunca forçada. Possuíam um barzinho embaixo das escadarias do centro acadêmico onde serviam comidas, sucos e lanches macrobióticos às vezes regados a cerveja, às vezes a licores especiais. Trabalhavam duro de segunda a sexta, apesar do horário restrito a poucas horas no almoço e no jantar, período entre as aulas que eles também freqüentavam. Sempre os via, no início das aulas, lavando suas louças e panelas em um tanque isolado.

Como resultado de seu árduo trabalho ao longo de alguns anos eles haviam comprado um sítio de seis hectares em algum lugar ao sul de Minas Gerais. Propriedade que tivera oportunidade de conhecer antes de receber o convite formal. Eles me convidaram para passar um mês por lá trabalhando como braçal em suas terras. Eles garantiriam minha comida, e teria um teto aonde dormir. Como pagamento por meu trabalho receberia parte da colheita de café que iríamos preparar.

E pensando em nossa história de amizade arrumava a mochila. A apreensão aumentando a cada instante. Uma sensação estranha de fuga. Precisava dar uma guinada em minha vida. Procurar uma alternativa de trabalho, definir, de uma vez por todas, o que fazia em relação a Fátima, em que área me especializaria na faculdade. Tinha mesmo que partir, não poderia tomar as decisões com clareza ficando em meio ao redemoinho.

Arrumei a mochila da melhor maneira possível, restringindo ao máximo o número de mudas de roupas, assim poderia levar alguns livros, o resto me arranjaria por lá. Liguei para a Fátima para me despedir, me despedi da família e parti. Peguei o metrô e quando cheguei à casa de Marcelo ele já me esperava carregando sua perua. Nos cumprimentamos e terminamos de carrega-la. Nos despedimos de sua família e fomos para a casa da Mara que nos esperava com outras coisas mais. Lá chegando repetimos o ritual de cumprimentos, carregamento e despedidas. Partimos levando nossas expectativas, acalentando nossos sonhos pessoais.

Noite

Sonhos que vem e que vão, noites atribuladas, cansativas, em uma cama que parecia ter milhões de quilômetros como o continente em que me encontrava sem ter consciência. Virava de um lado para o outro procurando a posição exata do corpo que me deixaria descansar. As expectativas invadindo os sonhos e misturando tudo, os desejos a insegurança de ser, os amores presentes, passados e futuros. Caleidoscópio fractal interminável, nunca repetitivo, diferente, igual, mas diferente, sempre diferente.

Carros rodando na rua, prostitutas se arrastando pelo asfalto e pela calçada com seu compasso marcado pelos saltos de sandálias sensuais. Percussão da música urbana, as vozes em gritos desesperados de amor, gritos agressivos de insultos, gritos suplicantes de perdão. O manto negro da noite fundindo-se à fuligem, à fumaça e ao cinza dos prédios alinhados nas ruas de asfalto negro.

Tudo se fundia em um êxtase sonoro e visual, era uma massa disforme palpável que me aconchegava no sono intermitente e me embalava para zonas mais profundas de meu ser.