sexta-feira, janeiro 27, 2006

ARCEBURGO - 8

– 19/07/85 –

Dia

O dia começou como os anteriores, com os mugidos das vacas saindo de seu refúgio noturno e os gritos do “homem das vacas”. Regamos as mudas depois que voltei com o leite. Tomamos nosso café otimistas pelo andamento dos trabalhos apesar do cansaço. Nossos músculos urbanos não estavam totalmente acostumados ao trabalho árduo de sol a sol, dia após dia. Verificamos e afiamos nossas ferramentas, enquanto eu fumava um cigarro, sentados à porta da cozinha contemplando o novo aspecto do córrego que cortava a propriedade a uns cem metros de nós.

Partimos para o açude que havíamos drenado acompanhando o leito do córrego que parecia renovado com a água correndo. A terra dos barrancos em suas margens começavam a adquirir um tom mais escuro produzido pela chagada da água. Novos odores emanavam do solo úmido como uma promessa de renovação da vida. Caminhávamos satisfeitos e orgulhosos de nosso trabalho.

Chegando ao antigo pequeno açude verificamos que a lama diminuíra devido à drenagem da água anteriormente represada. Ainda havia alguns arranjos a fazer. Deveríamos afundar mais um pouco o leito do córrego e rearranjar a terra de suas margens. Foi o que fizemos, replantando ainda mais alguns arbustos silvestres. A erosão que subia para a vertente do vizinho seria aos poucos contida e, caso a regeneração fosse possível e estimulada por nós, ocorreria a revegetação acabando com o processo que destruía a terra lentamente, ano a ano.

Concluímos o trabalho no pequeno açude um pouco mais tarde que o normal e fomos almoçar exaustos e cobertos de lama que secou até chegarmos à casa. Combinamos, durante o almoço, que subiríamos pelo córrego até atingir a nascente verificando qual era o exato ponto onde a água aflorava da mãe-terra.

Quando retomamos nosso trabalho subimos pelo córrego cujo leito ia, aos poucos, tornando-se mais arenoso, sua água mais límpida e fria conforme penetrávamos na floresta. Apenas afastávamos a vegetação que se interpunha em nosso caminho, não queríamos perturbar o ambiente mais do que o necessário para nosso objetivo. Chegando finalmente à nascente paramos um pouco para contemplar a absorver a tranqüilidade e a paz do ambiente que nos cercava. As vertentes fortemente inclinadas subiam como paredes verticais produzindo uma sombra fria, os poucos raios solares que penetravam pela vegetação densa criavam uma atmosfera quase irreal naquele refúgio, sentíamos como se estivéssemos cercados por uma enorme floresta.

Em seguida com uma trena de cinqüenta metros começamos a medir a distância entre a nascente e o ponto onde ficaria a o tanque de reserva de água que faríamos em seguida. Chegando ao ponto em que faríamos o tanque paramos e estudamos o terreno para medir o tamanho exato colocando estacas e delimitando o local com fita plástica amarela e preta. Calculamos a profundidade e verificamos quanto teríamos que cavar para fazer o reservatório. Terminadas as medições no local medimos a distância até a casa. Precisávamos calcular a distância exata para comprarmos uma metragem suficiente de uma mangueira que levaria a água da nascente até o tanque e deste até a casa.

Nossa tarefa do dia estava concluída e ainda tínhamos duas horas de sol que aproveitamos ajudando Mara nas tarefas domésticas que incluíam o rearranjo do jardim no entorno da casa. Deslocamos pedras, arrancamos touceiras de capim indesejáveis, pegamos mais lenha. Fizemos até uma roda de fogueira com pedras improvisando bancos. Nosso dia acabou ameno. Para mim como sempre, o treino final e depois o banho de balde contemplando o pôr de sol.

Noite

Caminhava pela noite de ruas desertas e frias como quem caminha fugindo de algo que desconhece. Levei algum tempo até perceber que fugia de uma sensação que se avolumava em meu interior. Nascia em meu ventre e se espalhava pelo corpo subindo e acompanhando a espinha. Passo após passo a percepção dos sons foi se alterando. Parecia que ouvia os sons de meus passos de dois lugares simultâneos. Um era o nítido som que provinha de fora, da rua, da calçada, o outro parecia se propagar por minhas pernas e atingir meu crânio um pouco defasado temporalmente. A percepção dupla de tudo foi crescendo enquanto caminhava e eu estranhava tudo o que via e ouvia naquelas ruas conhecidas.

E se ainda hoje acho estranho é porque não virei à esquerda na rua anterior e acabei encontrando alguém e entrando num bar abrigando-me do frio com as vozes e luzes meio lentas e hipnóticas. Não deixava de ser um lugar a se considerar incomum. Tinha a exata percepção dupla de tudo o que ocorria ali, duas velocidades de acontecimento produziam o efeito de dois corpos a ocuparem o mesmo espaço em freqüências diferentes.

Não era o único a perceber assim, mas não eram todos que percebiam. Os que não tomavam contato com esta dualidade temporal eram para nós o fluído que nos permitia atingir o duplo ser ou a simultaneidade de ser e não-ser. Celebrávamos a cada encontro o início de uma centelha que se espalhava pelo infinitamente pequeno imitando o infinitamente grande. As portas se multiplicavam assim como as sombras, iluminadas por uma tênue luz vermelho azulada.

domingo, janeiro 15, 2006

ARCEBURGO - 7

– 18/07/85 –

Dia

Terminamos de limpar o córrego removendo as touceiras de narpiê que impediam seu fluxo constante. Rearranjamos as rochas que estavam na margem fazendo pequenos remansos e acentuando pequenas corredeiras. Enfim, retificamos o leito do córrego e lhe devolvemos seu aspecto natural. Mantivemos os arbustos presentes em suas margens e transplantamos outros próximos para conter o avanço da erosão. A paisagem realmente estava se modificado dando-nos um prazer especial.

Após o almoço nos dedicamos a outra tarefa a ser realizada. Fomos até a cerca de um vizinho que criava gado. Ele era conhecido apenas como “Coronel”, grande fazendeiro regional e possuidor de vários sítios e fazendas que administrava pessoalmente com mão de ferro, um pouco de contravenção, alguns toques de ilegalidade e muita pressão pessoal sobre os mais simplórios. Situação típica do Brasil rural que se mantinha e desabrochava renovada a cada geração devido à impunidade, à mesquinhez, à ganância e, é claro, à estupidez humana.

Não deveria ser diferente em qualquer país de grandes dimensões territoriais que tivesse alguma região agropastoril com forte ausência de um poder centralizador. Apesar de sua ética duvidosa esses “coronéis” do mundo eram bons, amigos, pais, maridos e cristãos freqüentadores de suas igrejas protestantes ou não, o que acentuava sua deformação ética e moral. Eram produto de uma lógica tortuosa associada a uma política corrupta e insana que colhia seus frutos em uma sociedade cada vez mais desigual.

Mesmo levando em conta que estaríamos tocando num ponto sensível da vizinhança com o “Coronel” fomos até o açude improvisado que ele fizera em terras legalmente pertencentes a Marcelo segundo escritura registrada em cartório e legitimada após um processo judicial no qual o “Coronel” perdera o direito a explorar a água alheia principalmente por não querer negociar com “o moço da cidade”.

Sentamos à margem do pequeno açude fétido deixando as ferramentas de lado. Enrolei um cigarro e começamos a analisar a situação que teríamos que resolver. A cerca com o “Coronel” deveria ser refeita e deveria ser bem reforçada para impedir a passagem do gado já condicionado. Fixamos bem os mourões, esticamos as várias linhas de arame farpado sob a orientação salvadora do incrível “homem das vacas” que parecia aparecer sempre que precisávamos, como que surgindo do nada. Chegamos a desconfiar que nos observava de longe esperando o momento em que demonstrássemos não saber o que fazer ao coçar e balançar nossas cabeças.

Assim que terminamos de reforçar a cerca, com o suor a escorrer pelo corpo e o sangue a escorrer pelas mãos, mexer com arame farpado não era mesmo nossa especialidade, deslocamos nossa atenção para o que deveríamos fazer para drenar adequadamente o pequeno açude. Aumentamos a vazão que restituiria o fluxo de água do córrego, ajustamos várias pedras das margens e da vertente acima. Aprofundamos o leito principal segundo um desenho que nos pareceu natural e escavamos os barrancos laterais para aterrar porções enlameadas. Aqui também tivemos o cuidado de transplantar alguns arbustos silvestres das margens para conter a erosão presente.

As enxadas e enxadões zuniam no ar para estourar na água e arrancar os torrões de terra que ela escondia. Quando as ferramentas impulsionadas por nossos corpos atingiam a terra sob a água subiam para o ar atingindo nossos rosto e roupas colunas de água barrenta e fedendo a esterco bovino. Quando terminamos, no final da tarde, de reorganizar o pequeno açude ele se tornara de novo um córrego com margens enlameadas cobertas por arbustos em algumas partes até as pedras amontoadas aleatoriamente no leito do córrego formava pequenas corredeiras e podia se ouvir o som da água escorrendo.

Voltamos para casa acompanhando o pequeno filete de água do córrego que renascera após nosso trabalho. Marcamos alguns pontos onde deveríamos fazer alguns ajustes pensando em nosso objetivo maior que era fazer um tanque para reservatório de água que abasteceria a casa por gravidade. Chegando em casa Marcelo lavou-se rapidamente e pegando Mara pelas mãos e foram contemplar o trabalho realizado. Eu fui para minha clareira treinar. Quando me banhava a baldadas após o treino pude observar o casal voltando andando ao ritmo do cair lento da noite que chegava a leste sob a luz do sol poente a oeste.

Noite

Cada lugar é um único e indiscutível espaço-tempo. Pois um lugar qualquer não existe independente do tempo. Pode ser numa esquina contemplando a lua a percorrer o vão vertical formado por dois prédios ou as lágrimas de alguém que chora. Pode ser, ainda, a estupidez de alguém que acredita em alguma coisa que não existe ou que seja pouco provável que exista. Não necessariamente o ponto de partida, encontro ou retorno. Simplesmente uma dimensão aberta entre um gotejar constante e o som produzido por ele. Em meio a estes pensamentos encontrava-me parado sendo escorado pelo muro. Ao lado da barulheira habitual de um bar agitado numa noite de sábado ou domingo, ou terça, nunca segunda. Olhares se encontravam procurando o fundo e eu espreitava aperfeiçoando a arte. Manipulava sem manipular, sem fazer, acertando ao acaso ou não.

Visto que as pessoas me desconheciam, não tive dificuldade em me fazer inútil, por não dizer nulo, invisível, ou, ainda, insignificantemente desconsiderável, descartável. Certo dia, por não ter o que fazer entrei em uma fila e comprei uma passagem para não sabia onde. Chegando àquele lugar, por tentar esquecer meu nome, escolhi um dos tantos bares que se espalhavam ao redor da praça, peregrinação alcoólica. Escolhi uma mesa no canto e comecei. Intoxiquei-me mantendo o controle e deixando os pensamentos fluírem à velocidade própria.

Percebi as mutações constantes do pensar a cada instante porque as mudanças eram constantemente verificadas nas coisas, fatos ou pensamentos. E imaginava o que significava cada olhar, gesto, belo ou não que não fosse meu. Não justifiquei ou mistifiquei, observei apenas o que ocorria e tentei compreende-lo assim, sem críticas, mostrando-me sereno, compenetrado. Os anseios, desejos, quereres se perdiam a cada passo que dava, pensava. Não percebia que na realidade aumentavam com o crescente desinteresse. Assim não percebi quando me tornei objeto desses anseios, desejos, quereres, deixando de ser o sujeito da ação.

sábado, janeiro 07, 2006

ARCEBURGO - 6

– 17/07/85 –

Dia


Apesar da rotina árdua de trabalho diário continuávamos sem desanimar. As descobertas diárias nos fascinavam e nos impulsionava a seguir em frente. Quando nos afastávamos do córrego parávamos a certa distância para poder ver o resultado. A paisagem se alterava significativamente. A retirada das touceiras altas de capim revelavam uma árvore florida, um arbusto ou uma rocha exposta afastando o abandono anterior. Poderíamos dizer que a terra agora tinha dono e ele a trabalhava.

Eu sentia cada vez mais fortes os sintomas da abstinência de carne de todo tipo. Continuava a comer limões cravo para aplacar minhas crises de abstinência. E comia-os como se fossem deliciosa fruta.

Todos os dias, após o trabalho ou em alguns intervalos procurávamos lenha para o fogão, nossa energia motriz. Nesse dia em especial além dos efeitos da abstinência de carne senti os efeitos, hormonais provavelmente, da abstinência sexual. Estava a mil. Caminhei até a clareira onde fazia meus exercícios do dia chutando gravetos nos chão. Estava difícil encontrar mais lenha. Parecia que havíamos consumido toda a lenha disponível do lugar. Claro que ainda não havíamos explorado a floresta.

Após os exercícios, vários katas e chutes para o ar acompanhados de gritos, resolvi caminhar um pouco pela floresta para meditar, o desejo sexual estava me matando. Segui por uma trilha batida que não conhecia. Contornei a vertente que drenava para a parte alta do córrego em que trabalhávamos e avistei entre as árvores e arbustos outra clareira. Esta mais escondida no interior da floresta do que aquela em que treinava karate. Havia um afloramento rochoso que ondulava o terreno dificultando o acesso e por trás dele encontrei uma pequena área plana. No lado oposto ao afloramento rochoso havia uma árvore caída. Uma árvore inteirinha, toda ela, caída e ressecada pelo tempo. Se aquilo não era lenha outra coisa não seria. Peguei alguns galhos e fiz uma pequena fogueira para testar seu poder de fogo, queimou maravilhosamente.

Excitado parei em frente à árvore caída, me concentrei, respirei fundo, olhei em toda sua extensão e soltando o primeiro grito acompanhei com um chute certeiro em um ramo lateral. Fragmentos de seus ramos e galhos voaram em todas as direções. Meus braços não paravam, seguindo os chutes cortavam os galhos. Utilizei todos os golpes que conhecia naquela árvore caída e ressecada. Moldei seus restos mortais de forma a preservar um dos ramos principais que me serviria para carregar os galhos partidos. Aproximadamente quarenta minutos depois estava com uma pilha de lenha encima de uma carroça primitiva sem rodas. Caminhei arrastando a pilha de lenha por outra trilha mais plana, levei trinta minutos para chegar à casa. Marcelo e Mara riram quando me viram chegando. Não acreditavam na grande quantidade de lenha que eu trouxera. Sentei-me para fumar um cigarro e eles perguntaram, rindo e olhando para a pilha de lenha, se eu estava melhor em relação a minha fúria ou furor sexual. Respondi que tudo estava bem e começamos a amontoar a lenha em um canto próximo à cozinha. O dia estava no fim e quando fui me banhar com o balde do poço contemplei a fumaça das queimadas que acariciava os vales da paisagem.

Noite

Certa noite ao entrar em uma conhecida casa desconhecida e ser recebido por conhecida pessoa desconhecida, conheci um amargurado. Ao ver sua amada em braços alheios, ficou a contempla-la sem sair da conhecida casa desconhecida, torturou-se ante a impotência de deseja-la, mas não ter coragem para possuí-la. E torturou-se por adquirir a maldita doença de possuir, a obsessão de escravizar aquilo que o tornava significativo ante um código de normas. Ainda, significativo para si, eu como somatória de estímulos armazenados em alguma parte dentro de uma mente cansada pela repetição de atos. Cansada daquilo que percebe e conhece como universo da consciência de ser.

Tendo-se retirado a conhecida pessoa desconhecida, procurei o outro espírito atormentado pela ânsia da confirmação. E entre as conhecidas pessoas desconhecidas vislumbrei-a a um canto, copo perdido na mão, sorriso sensual, vestido colado ao corpo. Imagem fugaz, rapidamente se apagou na multidão da festa, perdi-a de vista.

Alerta, mas não desesperado, vasculhei a conhecida casa desconhecida e em plena pista avistei-a a deslizar em uma dança sensual, em companhia de um desconhecido barbudo, terno bege, calça marrom. Após tal visão, não soube ao certo, lembrava-me de ter chegado ao que parecia o centro de pulsação alcoólica da festa, o imenso bar. Ingeridas algumas doses, porém, reconsiderando e analisando o fato, não o encontrei anormal, uma vez que me atrasara e sabia do gosto que ela tinha pela arte de dançar.

Retomei a procura e deparei-me com o amargurado agora atormentado que, em plena bebedeira, voltara a se entregar ao sofrimento solitário a que nos entregamos quando sentimos que não mais somos amados por aquela pessoa alvo de nosso amor. Encontrava-me em meio ao mais obscuro dos níveis do eu, em meio à crescente euforia reinante na festa. Tudo parecia não mais fazer sentido, embora fosse aquele o universo ao qual pertencia sem compreende-lo, num instante localizado entre um segundo e outro. Tentei convencer-me de que quanto maior o apego, maior seria o tormento, tirando-me assim a visão completa do universo e lançando-me a um plano único e radial que era o ego em toda sua plenitude.

Deixando a um lado as considerações dialéticas dei vazão ao mais animal de meu ser e parti em busca dela. Não sabia porque, mas procurava nos cômodos menos agitados, mais distantes da balbúrida da festa. A cada cômodo revistado com o olhar, a cada partícula absorvida por minha retina, aumentava a ansiedade e a tensão interna, que poderia ser comparada à de uma caldeira prestes a explodir.

Entrando em um corredor de diversas portas me detive diante de uma e apenas uma única e individual porta. Sem saber porque escolhera aquela e não outra. Não notara sequer que parara diante da porta como quem adia a colheita do fruto maduro. Detido pela perplexidade de encontrar o fruto há tanto procurado e não saber o que queria. Abri-a após um tempo alheio aos cronômetros. Não esperava, ou não sabia o que, encontrar que pudesse perturbar a superfície de meu ego. Vi a cama e nela ela entregue às carícias do barbudo agora sem terno bege e calça marrom.

Lembrara-me do riso que vibrara em minha mente ao vê-los dançar pensando que poderia sê-lo por puro gosto de dançar. Não poderia admiti-lo. Sem emitir som algum retirei-me em profunda agonia tentando compreender não o porque de minha amada estar em braços que não os meus, mas a agonia e sua origem em si. Como poderia estar sentindo tamanha desorientação e fragilidade sendo capaz de me pôr a chorar pelo simples fato de me sentir só e admitir-me, assim, excluído de todo e qualquer relacionamento que tivera até então?

À saída encontrei o amargurado atormentado em plena queda diante da pressão à qual era submetido seu peito ante a visão da língua da amada a tocar a língua daqueles braços que a envolviam agora e que não eram os seus. Passei por eles como passa o vento pelas ruas desertas nas madrugadas silenciosas, deixando apenas parte de meu alento. Ganhei a rua e deixei que a brisa da noite me cobrisse assim como a escuridão brilhante da cidade grande. Perdi minha identidade em meio à multidão, nem tudo estava perdido, poderia pegar a sessão da meia-noite e assistir àquele filme que há muito não via.

terça-feira, janeiro 03, 2006

ARCEBURGO - 5

– 14/07/85 – O leite, a vaca e o curral –

Dia

Há uma semana praticávamos o mesmo ritual já ajustados mecanicamente a nossas rotinas, cada um tinha suas tarefas individuais e em conjunto. O cansaço começava a nos rondar. Foi quando começamos a mudar nossas rotinas para tentar agüentar o tranco. Foi assim que assumi a tarefa de ir buscar o leite no curral. No primeiro dia tudo era novidade, mais uma novidade, na verdade muitas novidades. Nuca havia visto alguém tirar o leite de uma vaca.

Quando ouvi os primeiros sons das vacas sendo recolhidas do pasto noturno levantei-me e me troquei rapidamente. Fui até o poço lavei o rosto com sua água fria e enrolei meu primeiro cigarro. Entrei na cozinha e pus um resto de café para esquentar no fogão a lenha. Tomei o café contemplando as estrelas e fumando mais um cigarro. Começava a clarear no extremo leste, as estrelas ainda brilhavam a oeste. Era hora de sair para buscar o leite.

Caminhei na escuridão fria da manhã nascente rumo ao curral, passando as porteiras. As corujas me acompanhavam com o olhar eu ouvia o rufar de suas asas conforme me aproximava de seus ninhos. Em seguida gritavam excitadas procurando me afastar. Próximo ao curral pude sentir o cheiro de bosta e suor animal. Alguém falava alto “Vai idiota fica aí! Isso assim mesmo! Não se mexe! Vaca estúpida!”, era o “homem das vacas” já tirando o leite há algum tempo. Nos cumprimentamos, ele sem parar de tirar o leite, e começamos a conversar. Suas mãos hábeis tiravam jatos das tetas da vaca com uma velocidade incrível. O leite que chegava ao balde espumava e eu podia ver o vapor subindo.

Dei minha caneca metálica e ele a encheu de leite. Não que eu gostasse muito de leite, mas tinha que me alimentar, há uma semana, eu carnívoro convicto, só comia vegetais, quase não agüentava mais. Tinha crises de abstinência que me faziam comer limões-cravo como se fossem deliciosas frutas. Peguei a caneca de volta e senti o cheiro de leite materno subindo com a fumaça. Tomei um grande gole e senti o leite, ainda com o calor da vaca, descendo macio, reconheci o cheiro dos bezerros.

Em seguida, antes do segundo gole, um prolongado arroto me fez sentir o gosto do leite mais forte. Afastei-me um pouco para poder observar melhor o trabalho do “homem das vacas” e coloquei distraidamente atrás do animal. Conversávamos, ele tirava o leite da vaca e eu bebia em minha caneca, foi quando senti um líquido quente escorrendo por minha perna esquerda e molhando minha calça e minha bota. A vaca resolvera urinar naquele momento, aliviou sua bexiga em mim.

Gargalhadas a parte estava experimentando a dura vida saudável do homem do campo e todos seus odores. O cheiro de bosta misturado ao de urina das vacas, agora eu sabia a diferença entre eles, o cheiro às vezes insuportável de meu próprio suor acumulado nas roupas, todos odores naturais da vida saudável do campo. Olhei para o céu que clareava e senti saudades da vida intensa e poluída da grande cidade. Me despedi do “homem das vacas” e caminhei cheirando a mijo de vaca de volta para o sítio onde Mara e Marcelo me esperavam. Entre um peido com cheiro de bezerro e um arroto de regurgito de leite passei furioso pelas corujas e desta vez fui eu quem gritou enfurecido, elas saíram voando, eu me senti ridículo e gargalhei como um louco solitário carregando leite no meio do pasto. Cheguei ainda arrotando leite e fui ajudar o Marcelo que já regava as mudas. Repetimos o ritual diário. Tomamos café e saímos para o campo, a terra nos aguardava naquela manhã morna, mais um dia de trabalho.

Noite

O puro fato de meu medo de ficar só me levou a me ancorar a alguém. Isso fez com que a confusão gerasse mais confusão e esta uma constante insegurança para ambos. Diferente da insegurança encontrada na simplicidade de namoricar de pé ao pé da igreja à noite durante uma quermesse numa cidade quase do interior. O medo de ser surpreendido pelo padre, pelas tias da menina ou por seus irmãos e ter que assumir um compromisso formal.

A volta da incerteza de não me permitir experimentar, de deixar de conhecer a quem ainda falta e assim abafar os sonhos de outras noites. Esse eu, ego, centro do universo individual que não posso, ou quero, por medo, descartar em uma esquina após vomitar à saída de um bar e que me faz sentir maior importância que a que realmente tenho. Esse maldito ego que me torna arrogante quando sou acuado, que me deixa orgulhoso quando conquisto algo.

Por isso procurava incessantemente a totalidade do ser, para aniquilar os rompantes do ego maldito, para aplacar as oscilações violentas de minha mente que me desgastavam tanto e me afastavam de todos. Totalidade essa que parecia ser o único porto seguro na tempestade furiosa desse oceano etílico. A totalidade unificadora e uma que equilibrava o yin e o yang nessa balança louca que era meu ser. A totalidade, que por ser única me pareceu constante ou assim se tornou numa noite fria quando me faltava o calor de outro corpo ou de um cobertor elétrico comprado a prazo, ou, ainda, me faltava o calor que viria da alma vendida a prazo a um Mefistófeles urbano para obter o fogo que queima nas profundezas de um eu profano.