sexta-feira, março 31, 2006

ARCEBURGO - 16

– 29/07/85 –

Dia

Nesse dia, após o ritual de regar as plantas, de pegar o leite no curral e de tomar o café da manhã juntos, nos dividimos. Fui trabalhar com o pai de Mara no tanque que ficaria pronto no final do dia. Marcelo foi até a cidade para providenciar as coisas para fazer um churrasco e convidar os vizinhos no dia seguinte. Mara dedicou-se como sempre aos afazeres domésticos, era nossa provedora de alimento sem parar, além disso, o jardim e a casa estavam visivelmente modificados desde que começara a trabalhar neles.

Misturei o cimento à areia a maior parte do dia, despejando o concreto onde o pai de Mara me indicava, ele acertava tudo com uma trave de madeira, um nivelador e muita paciência. Trabalhamos sem parar até a hora do almoço quando chegou Marcelo. As compras feitas, os convites também. Marcelo ficou ajeitando as coisas para o dia seguinte na casa e depois se juntou a nós no tanque. Terminamos o trabalho um pouco mais tarde que os demais dias. Exaustos contemplamos o resultado e ficamos satisfeitos com nosso desempenho.

Noite

Noite quente ar parado. Noite de paredes escuras e sons que vinham de algum lugar indefinido da casa. O arrastar de um móvel, os sussurros farfalhando o ar parado, quente. As paredes exudando, tornando sua textura pegajosa, morna. Borbulhas num aquário com seus peixes imóveis na noite quente de paredes escuras. Eles ocupavam a casa, eu também.

Não me preocupava, procurava não pensar a respeito. Nosso contato era através de sussurros incompreensíveis e arrastar de móveis, eventualmente um roçar de pele fugaz. Íamos e vínhamos pela casa absortos em nossos fazeres, concentrados totalmente, plenamente presentes naquilo que fazíamos. Universos paralelos que não se encontravam no infinito, as paralelas de Meissner. O triângulo esférico gravado no hemisfério esquerdo plotando posições relativas no espaço.

A árvore do conhecimento estendendo suas raízes para permitir que novas folhas se desenvolvessem a cada toque da luz solar. Rearranjo de poeira cósmica e energia estelar modelando corpos pelo planeta esquecido. O distanciamento vertiginoso da consciência de ser, da consciência de estar. Desvio energético que me confundia, que me consumia e a consciência diluindo-se no fluxo constante de um tempo imposto. Universo de regras ditadas, de opiniões formadas. Noite quente suor escorrendo. Noite distante e presente, mas sempre quente de paredes escuras e sons indefinidos se espalhando por tudo.

domingo, março 26, 2006

ARCEBURGO - 15

– 28/07/85 –

Dia

Após três dias de trabalho árduo uma pilha de terra se formava ao lado dos tijolos e do cimento que havíamos levado até o poço para começar a construir o tanque. O barranco havia sido cortado simetricamente e formava um retângulo perfeito. Fiquei encarregado de fazer a mistura do cimento com areia e água, alternava esta tarefa carregando tijolos para que Marcelo e o pai de Mara fizessem seu trabalho de levantar as paredes do tanque. O pai de Mara ajustava sistematicamente os tijolos assentados por Marcelo verificando seu prumo e fazendo os reparos necessários. Marcelo parecia uma máquina de assentar tijolos. Eu me entregava às duas tarefas de abastecê-los sem parar passando do cimento aos tijolos cadenciadamente. O céu de inverno estava azul e o sol nos castigava sem piedade.

Pouco a pouco o tanque foi tomando forma com as paredes subindo como que tentando sair do leito do córrego, escalavam o barranco apontando para o céu. O frescor no interior do tanque aumentava à medida que as paredes subiam. Assim terminamos mais um dia de trabalho misturando cimento, assentando tijolos e fazendo paredes. Paredes que moldariam a água que encheria o tanque quando estivesse pronto.

Noite

Nos caminhos tortuosos de minha mente doentia passei a noite rolando na cama em sonhos hiper-reais que me banharam em suor e me fizeram acordar atordoado. Percebia cada partícula dos objetos que via, era um ver-sentir insuportavelmente material, real e quase doloroso. A suave realidade do dia-a-dia parecia distante. Compreendi a limitação proposital da tomada de consciência dos objetos de minha percepção. Essa limitação era necessária, era imposta por padrões comportamentais que me faziam considerar real apenas aquilo que via, sem discussões filosóficas ou metafísicas demais. A consciência filtrava e deixava tudo no lugar. Acrescentava uma noção exata de continuidade e direcionalidade fatal. O destino estava escrito nas estrelas ou determinado por um Deus antropomórfico maniqueísta, vingativo e seletivo. Quando não antropomórfico intencionalmente humano, punindo, recompensando, exilando ou perdoando.

A esquizofrenia natural de possuir dois cérebros era também produto de uma consciência parcial que determinava a dominação de um dos hemisférios encefálicos. Eu possuía além dela a esquizofrenia auto-imposta que me fragmentava o ser. Tinha uma tendência a realizar vivências múltiplas no mesmo espaço-tempo. Acreditava que isso era normal. Pouco a pouco, no entanto percebi que havia uma grande diferença na percepção temporal que eu possuía e aquela de meus semelhantes. Calava-me embora não concordasse que o tempo se deslocava mais rapidamente a cada ano.

Era isso que me fazia rolar na cama tornando as noites mais longas, os dias intermináveis, os anos eternos. Sabia que o espaço-tempo se extinguia no ritmo da vida para minha percepção normal. As portas para outras dimensões estavam ali, mas não as reconhecia sempre. Quando isso acontecia vagava em dimensões mais que paralelas, eram dimensões simultâneas, mutuamente exclusivas, mas interligadas. Vi minhas pernas em sonho, estava sentado no alto de uma pilha de cascalho sobre um telhado de concreto. Senti o contato do cascalho em meus glúteos, a brisa em meu rosto, levantei o olhar e contemplei a paisagem. Havia outros prédios, próximos e distantes, muito verde se espalhando entre eles, pessoas a caminhar. Soube, então, que estava sonhando ou vivendo em outra dimensão em outra realidade.

domingo, março 19, 2006

ARCEBURGO - 14

– 25/0785 –

Dia

Mais uma manhã de vida no campo. Uma nova tarefa me esperava nesse dia. Deveria revirar o material da composteira. Enterrei-me logo cedo na pilha de estrume misturada aos restos de nossa comida. Senti o calor que exalava a mistura que era atacada por microorganismos que fariam o trabalho de converter a matéria orgânica em ácidos húmicos e sais minerais. O calor que o composto irradiava contrastava com a manhã fria coberta pela neblina espessa, que nesse dia demorava a se dissipar. Acreditei, por ignorância que mais tarde choveria. Completei meu trabalho e fui ajudar Marcelo a regar as mudas. Agora o trabalho era facilitado, pois enquanto ele e o pai de Mara enchiam seus baldes na água corrente eu o fazia lançando outro balde ao poço. Assim terminamos mais cedo e pudemos demorar um pouco mais no café da amanhã.

Saímos então para encarar novamente o barranco. Desgastamos suas paredes que agora assumiam um formato retangular. Esculpíamos a terra que em breve violaríamos com tijolos e cimento. Eu amontoava a terra cada vez mais alto ao lado do poço. O contraste da terra contra o céu era maior neste dia, pois as nuvens o cobriam tornado-o mais pálido. Meu corpo se movia como que impelido por um mantra místico. Sentia cada músculo, sentia cada articulação em meu movimento pendular. Não parava nem para enxugar o suor que se misturava à terra que grudava em meu rosto traçando uma máscara ritual. A camiseta há muito pendurada em um arbusto. Meu torso adquiria linhas desenhadas pela terra que acompanhava a drenagem do suor.

Marcelo e o pai de Mara trabalhavam meticulosamente calculando e medindo cada movimento posterior que fariam cortando o barranco. O formato retangular se completara, começaram então a calcular a profundidade. A um canto Marcelo cavou furiosamente fazendo um pequeno retângulo. Considerando a inclinação do terreno cavou outro no lado oposto de profundidade diferente. Essa seria a medida que teríamos que completar entre os dois pontos adequando a inclinação. Naquele dia não voltamos para almoçar. O pai de Mara foi até a casa e com ajuda dela nos trouxe o almoço do dia. Almoçamos debaixo da sombra fresca das árvores mais próximas saboreando a comida e a paisagem em uníssono. Comíamos e suspirávamos satisfeitos. Em seguida nos esticamos cada um em seu canto e dormitamos por alguns minutos até sentir que cairíamos em sono profundo. Levantamos com ímpeto redobrado, mais para não sucumbir ao sono do que para continuar a trabalhar. Voltamos a nosso rítmico trabalho mais uma vez. Assim o fizemos até o fim do dia. Repeti meu ritual diário do treino e do banho para encarar mais uma noite sem fim.

Noite

A noite podia ter horas altas e baixas, estas podiam ser longas ou curtas. No canto da sala, uma cadeira vazia, vazia ou não, cadeira. O canto na realidade um ângulo, acima e abaixo o vento que o tornava sólido. Se não muito sólido, a luz, quando não muito luz a brasa, ou, quem sabe, a madeira pálida a apodrecer no chão de uma sala há muito esquecida. Pentagrama místico de chão, sala, luz, canto e cadeira que se desloca para frente e para trás no eixo permanente de um tempo único, indo e voltando como as marés rítmicas que acompanham a Lua.

Sonhava sucessivamente, noite após noite, com uma casa chinesa e as pessoas que nela se encontravam. Algumas vezes cheguei a perceber que poderia não ser chinesa, mas tinha a certeza, única, de nunca ter pisado naquela terra. Encontrei o buraco azulado ao virar à esquerda na esquina de um longo corredor escuro, não me espantei, pois sabia que uma terra estranha tornava tudo possível. E aquele belo convento que virou sanatório e dali para outro. A vela queimando acima da rolha, acima do óleo, acima da água dentro do copo, acima da tábua que descansava encima da mesa sobre o chão da casa acima do solo acima da terra por sobre o planeta, nem abaixo nem acima de coisa alguma.

Máquina de fazer, fazer a máquina, desfazê-la. O crepitar da madeira em brasa, os pingos que passavam pelo filtro, a pena deslizando no papel e essa brisa constante que estremecia a chama e me perseguia atrás de alguém que chamava nas noites solitárias. Poucas linhas nada são ante si ou então não tão urgente, nem tanto assim. Não é questão de economia ou coisa assim, pode ser alguma coisa que está no fim, ou, ainda, o começo de algo que está por vir.

A formiga passeia atenta a tatear a mesa e esse livro que não parava de me chamar entre um mugido e outro, à vezes um latido. Corro os olhos por longas linhas filosóficas. Meus pensamentos saltitam como anuros em uma lagoa. Chegam, param um pouco, respiram, se preparam para o salto e se vão deixando lugar para outros. Quase ouço o roçar das patas da formiga que ainda anda enquanto leio e penso. Cansaço, hora de dormir.

domingo, março 12, 2006

ARCEBURGO - 13

– 24/0785 –

Dia

Começamos o dia com a fúria de sempre eu, Marcelo e Mara entregues a nossas tarefas matutinas. Tomamos café a partimos para o poço com o pai de Mara. Sua experiência de pedreiro nos orientaria no trabalho que tínhamos pela frente. Começamos o trabalho assim que ele acertou as medidas e esticou os barbantes de pedreiro demarcando até onde deveríamos acertar o barranco. Marcelo começou a trabalhar com a picareta retirando a terra. Esperei um pouco fumando um cigarro e em seguida comecei a jogar a terra para cima do barranco com a pá. Ele ia retirando a terra, cortando o barranco e seguindo o sentido horário, eu o seguia um pouco atrás para não atrapalhar fazendo movimentos pendulares com a pá e vendo a terra subir contra o céu azul completando sua trajetória até cair na parte de cima do barranco. Aos poucos começou a se formar um montículo de terra à margem do barranco.

Não sei bem porque o pai de Mara insistia em tirar sarro de mim. Não sei porque eu me enfurecia cada vez que ele fazia isso. Sentia uma raiva crescente e aumentava a força de lançamento da terra com a pá. Parei algumas vezes pensando em pulverizar seu crânio com a pá, mas desisti da idéia por acha-la estúpida. Ele devia ter suas razões e eu tentava de todo modo me concentrar no trabalho e não ligar. Concentrava toda minha consciência em meus músculos, em meu esqueleto que se movimentava e na trajetória da terra contra o céu azul. Assim trabalhamos no primeiro dia até a hora do almoço.

Almoçamos e acertamos nossas diferenças, o pai de Mara e eu. Se ele não me provocasse mais conservaria sua cabeça intacta, eu procuraria não ligar para as provocações eventuais dele. Voltamos ao barranco e retomamos a escavação. Minha pá zunia como uma máquina incansável em um ritmo constante. As picaretas cortavam o barranco alimentando o solo com a terra que eu enviaria rumo ao céu que não mais olhava. Apenas recolhia a terra com a pá e a arremessava para cima em uma parábola perfeita. Cada vez mais longe, cada vez mais alto. Assim terminamos mais um dia de trabalho árduo. Fui para meu banho ritual após o treino e contemplei o por de sol com meus olhos mais cansados que nunca.

Noite

E mais uma vez estávamos reunidos, ao redor da mesa, sem velas, por estar assim como um grupo de cirurgiões olhando para o espaço vazio. Como quem tem algo a consertar e ainda não entende. Pensávamos e falávamos tentando resolver aquilo que não admitíamos poder ser. A cada palavra, cada idéia, não fazíamos mais que negar a descoberta do quão necessárias eram nossas reuniões. Discernimos, então, o orgânico dentro do idealizado e percebemos que os pensamentos nada mais eram que um subproduto da matéria. O que não suportávamos era o majestoso ar de superioridade que pairava sobre nossos olhares frios e suportávamos menos a consciência de que em algum momento esse olhar nos pertencera, não entendendo como pudéramos assumir tal postura diante dos semelhantes.

Resolvemos então, por-nos a elucidar nossa situação para deixar claro que estávamos cada um por si e não dispostos a ceder espaço um ao outro. Duelávamos com a lâmina cortante das palavras, possantes setas lançadas por nossas cordas vocais e direcionadas por nossos egos. Utilizávamos a racionalidade como fuga completa de nossa ignorância, daquilo que poderia ser a realidade em si e fora de si. A um passo da auto-afirmação as colocações desconexas intercalavam-se e era difícil concretizar o retorno ao tema inicial, muito embora isso não fosse mais importante.

A punição existia uma vez que não aceitávamos que se apresentassem padrões que não os nossos. Modelagem do ser. Esculpíamos o não palpável como se fosse necessário explicar alguma coisa que não sabíamos. E lembráramos que outro dia ao olharmos para a parede oposta sobre nossas cabeças percebêramos a luminosidade que se misturava e sentimos que ela resultava da energia de um corpo latente, sutil, dentro do corpo mesmo que carregávamos. Um corpo energia, um corpo luz e víamos como os corpos de energia se misturavam numa profusão de luzes azuis, verdes, roxas ou intensas faíscas em suas superfícies quando se tocavam enquanto discutíamos.

sábado, março 04, 2006

ARCEBURGO -12

– 23/0785 –
Dia

Após nosso repetitivo ritual matutino de regar as mudas, pegar o leite no curral e tomar o café da manhã fomos até o córrego onde a mangueira nos esperava molhada. Naquele dia foi difícil começar a engrenar o trabalho, pois o frio nos afastava da água. Meia hora após começarmos o trabalho já andávamos na lama fria suando e retesando os músculos. Levamos toda a manhã e parte do início da tarde para levar a mangueira até a casa. Enquanto eu fixava a mangueira em um suporte ao lado da cozinha e preparava uma canaleta de escoamento Marcelo fora até a nascente para colocar a outra ponta na saída da água que brotava por baixo da rocha na nascente.

Eu estava terminando a canaleta, Mara arrumava o jardim e a casa alternadamente. Estávamos concentrados em nossos trabalhos quando um grito nos chamou a atenção. Marcelo corria e gritava como um louco descendo o morro. Corria, saltava e gritava sem parar. Fomos até a mangueira para espera-lo. Chegou triunfante e beijou Mara alçando-a do chão. Voltamo-nos para a mangueira esperando o fluxo de água. De repente ela começou a jorrar primeiro um pouco lamacenta, depois cristalina e fresca. Os reflexos dos raios do sol no filete de água nos hipnotizava. Ficamos ali parados em silêncio contemplando o fluxo ininterrupto de água, vendo como escorria pela primeira vez pela canaleta que eu escavara, carregando gravetos e pedaços de capim. Levando a terra solta em uma pequena onda que prometia nova vida.

Fui o primeiro a quebrar a contemplação colocando minha cabeça embaixo da água que jorrava quase gelada. Molhei a cabeça, bebi em grandes goles e joguei água neles. Nos abraçamos e festejamos mais um empreendimento que dava certo. Fomos descansar à porta da cozinha enquanto Mara acabava de preparar o almoço. Fumei um cigarro enquanto contemplava mais uma vez a paisagem que modificávamos com nosso trabalho.

Estávamos sentados contemplando quando chegou o “homem das vacas”. Inspecionou nossa nova obra, olhou a paisagem e cumprimentou-nos pelos trabalhos realizados. Desaprovou apenas nossa falta de conhecimento para melhorar o desenvolvimento das mudas frutíferas do pomar que regávamos todas as manhãs ao redor da casa. Disse que deveríamos fazer uma compostagem e adubar com ela as mudas. Ele forneceria o estrume de vaca necessário e nós poderíamos adicionar nosso lixo orgânico a ela. Depois deveríamos esperar que a mistura ficasse quente e somente então revirar para arejar, retirar um pouco e mistura-la à terra argilosa para fazer o solo orgânico. Tínhamos, portanto, mais um projeto a executar enquanto nos dedicávamos a dar continuidade a nossos objetivos.

Ficou combinado que no dia seguinte iríamos até o curral para pegar uma carga de estrume de vaca para iniciar nossa composteira. Separamos um encerado que serviria para tampar o composto e faze-lo fermentar, tomamos mais um café, fumei mais um cigarro e fomos até o leito do córrego onde faríamos a caixa de água nos próximos dias. O “homem das vacas” nos acompanhou a nosso pedido para dar sua opinião. Pegamos nossa ferramentas e fomos até lá caminhando despreocupadamente.

Chegamos à vala semiescavada em forma de caixa que cortava o leito do córrego e verificamos que o fluxo havia aumentado como resultado de nosso trabalho de retificação do leito do córrego e eliminação do açude das vacas a montante. Nos surpreendeu de que, apesar do desvio de parte da água para a casa o volume aumentasse dia a dia. Com uma trena e fio de pedreiro marcamos a área que deveria ter o tanque que serviria de reservatório. Calculamos a profundidade e o quanto teríamos que escavar e acertar o barranco.

Voltamos para a casa, tomamos outro café e Marcelo se preparou para ir à cidade para receber o pai de Mara que chegaria essa tarde para nos ajudar a fazer o tanque. Eu voltei para o poço e comecei a limpar o fundo para o trabalho que começaríamos no dia seguinte. Mara acompanhou Marcelo e o “homem das vacas” aproveitou a carona para ir à cidade. Era a primeira vez que ficava sozinho no sítio, mas não tive muito tempo para pensar a respeito. Concentrei-me no trabalho e não parei até que eles voltassem.

Quando chegaram faltava pouco para terminar a jornada de trabalho. O Pai de Mara inspecionou nosso trabalho, deu alguns conselhos e delineou o que teríamos que fazer nos próximos dias. Cada um de nós assumiu uma função, o Pai de Mara se encarregaria de manter o prumo e orientar Marcelo que acertaria o barranco retirando a terra, eu limparia o fundo retirando a terra com uma pá e colocando-a no solo ao lado do tanque. Quando chegamos à casa Mara ainda preparava o jantar. Fui fazer meus exercícios e depois repetir meu ritual de banho. O dia terminara.

Noite

Nessas noites de insônia quando a mente inquieta me levava e me trazia como as ondas de um mar tirano que se deixa levar pela força da lua, só mesmo uns cigarros e a luz solitária do quarto me acompanhava. A música vinda do rádio parecia se adequar ao que sentia, por isso geralmente preferia o rádio a um disco. Gostava da surpresa, da satisfação de ouvir aquela música que meu espírito ansiava e o programador acertava, gostava da decepção e da ira quando o programador errava e toca aquela música que tanto detestava. Por mais previsível que fosse a programação sempre havia uma surpresa, sempre podia contar com o inesperado.

Como no dia a dia quando planejava minha vida e algo inesperado me mostrava que a realidade não se importava com aquilo que pensava ou queria. Nesses momentos, assim como nos momentos de insônia, procurava identificar para onde o fluxo ia e aproveitava sua força para me lançar delirante ao que me era oferecido. Ou, caso não quisesse, utilizava a força do fluxo para me impulsionar em outra direção canalizando a energia represada para ouro lugar e tempo.

Quando fazia isso nas noites de insônia, nas raras noites de insônia, sabia que estava no espaço-tempo correto quando aos poucos sentia o suor a sair lento pelos poros das glândulas e a escorrer suavemente pela pele. Sabia que estava vivo e que devia ir em frente, pensava que, enquanto os outros dormiam, eu me aprimorava. Não havia inimigo que resistisse a tanta determinação, a um propósito inflexível, a uma intenção absoluta. Por isso mergulhava no turbilhão de pensamentos que vertiginosos povoavam minha mente doentia e me entregava a cada um deles como se fossem bolhas de sabão arrebentando com uma suave brisa.

Deixava que a febre de minha insanidade controlada aumentasse e distorcesse a realidade cotidiana transportando-me a outras dimensões simultaneamente paralelas. Nesses momentos tinha consciência de cada partícula de meu ser e as depurava deleitando-me com a consciência de ser que me fazia humano.

Ah! Essas noites de insônia. Como as detestava! Como as precisava! Era a partir delas que rearranjava meus objetivos, refazia meus planos, procurava as estrelas e ficava atento à lua. Era a partir delas que novos ciclos se iniciavam e eu me preparava para um novo salto. Sempre os mesmo ciclos com repetição exata, nunca os mesmos fatos, sempre um salto irreversível para algum espaço-tempo diferente. Depois de tudo depurado, analisado e conscientizado me vinha o sono leve que me levaria para outro mundo, tão vivo quanto este, ia a meus sonhos, acabava a insônia.