sábado, maio 26, 2007

URBE - 33

PRIMAVERA

O dia estava calmo, o sol aquecia cada vez mais o cimento e as pessoas que se deslocavam sob seus raios. A preguiça tomava conta da cidade e ninguém podia pensar. Minha cabeça parecia prestes a estourar e a realidade do sonho da noite anterior ainda me perturbava o espírito. Sentia a mesma sensação apesar de não me encontrar entre as pessoas que me cercavam durante a noite, durante o sonho. A clareza das ações que praticara me deixou perplexo. Procurei decifrar a seqüência de imagens e atos que presenciara. Experimentei em mim o que teorizara, a mistura entre sonho e realidade. Não poderia descrevê-la então. A resolução de objetivos imediatos não foi integral, deixando transparecer falhas. Não era o calor que me fazia delirar. Fazia-me delirar o interminável fluxo de energia que se desordenava na grande cidade.

A lentidão da turba congestionando o fluir das máquinas, as mentes alteradas não distinguindo a realidade camuflada. O cair da tarde aumentando seus recursos. A luz real, os gestos, sentimentos substituídos pelo artificial. O desabafo da noite anterior e o acordar transportando-me a esse mundo mesclado de realidade e sonho mais uma vez. A chuva que banhava meu corpo parecia, a cada pingo, mais distante. Os carros que avançavam em lenta procissão eram uma agressão constante a minha mente. E o vento que me permeava trazia e levava tudo de mim.

Cansado da rotina comportamental enfatizei, declarei e, definitivamente tomei um partido. Misturando as relações entre as diferentes classes tracei parâmetros inexistentes. Deslizei pelas ruas de cartão marcando, com pequenos alfinetes de cabeça colorida, pontos estratégicos de ação no mapa da cidade pendurado à parede de meu quarto. Transpus os morros sem dificuldade e, com dificuldade máxima e insuportável, caminhei rumo ao amanhecer que não existiria na cidade de papel.

sexta-feira, maio 25, 2007

URBE -32

INVERNO

Os traçados da grande cidade fugiam a qualquer padrão pré-estabelecido amontoavam-se em perfeita desarmonia. Ordenação e desordenação se alternavam determinando o padrão espacial de urbanização. Ao sacrificar um animal a determinado deus ou entidade procurávamos manter um equilíbrio irreal. Oferecíamos sons aos espíritos latentes nos corpos para enaltecê-los. Encontrávamos a calma nas estrelas, ou em seu tempo, sua influência sobre nós.

Falávamos, julgávamos e olhávamos tudo o que acontecia sem participarcom um distanciamento indiferente. O tédio povoava nossas mentes. O guerrilheiro contava sua infância ao padre ajoelhado no confessionário murmurando. O esquema se repetia, soava a campainha e todos paravam e iam embora para casa. A chuva caia molhando o asfalto, os carros, as pessoas, suas mentes, suas almas atormentadas. Continuidade, descontinuidade, universos paralelos, descontinuidade paralela.

Após a música na escuridão, saí para a claridade do dia. Misturei-me aos sons da rua, procurando deles fugir. Pelas avenidas os cubos reservados ao lazer das crianças urbanas. O fundo e a lateral de dois prédios limitava a fronteira externa, horizontal, o viaduto impedia a penetração do azul do céu. Divertiam-se as crianças entre bêbados esfarrapados, trabalhadores descansando, cimento velho e estruturas metálicas enferrujadas didaticamente dispostas. A ferrugem a lhes cobrir as mãos, o pó preto impregnando-se em suas roupas, em suas carnes. Brincavam imaginando que aquele arbusto era uma floresta e os bancos as montanhas.

Saindo da avenida deixei seu ensurdecedor grito para trás. Ao entrar na pequena rua quase sem movimento, percebi cada parte do todo que constituía meu campo visual. Podendo divisá-las, detive-me demoradamente para poder compreendê-las. A vila mostrava suas casas rodeadas de árvores como não fazendo parte do universo da grande cidade que a cercava. O sol a se por e o calor proveniente do nada, a borracha dos pneus impedindo as trocas. Vislumbrei entre os prédios um pedaço de azul e umas nuvens e, circulando entre elas, um urubu, que solitário, cortava o céu em seu enigmático vôo.

Em harmonia desconexa o suor percorreu-me a face ao entrar no quarto. A ira tornou-se lucidez após a meditação, a energia canalizada. O dia chegou ao fim e minha dúvida aumentou. A brilhante autarquia demonstrou-me sua infinita sabedoria a cada ação praticada em nome do povo que se articulava, então, tentando obter alimentos. A água da banheira cheirou a podre, as plantas secavam e o solo não se tornou mais fértil, na manhã que sucedeu ao fato que não aconteceu.

Meus olhos tornaram-se mais excitáveis ante a imagem imprevista. A opressão dos prédios sobre meus ombros. A gulodice do trânsito que absorvia minha energia. Política, guerra e prioridades entre tantas outras, confundiam meus anseios naturais e reais. Criáramos artigos e leis destruindo tudo o que manipulávamos, transmitindo nossa crescente perturbação em todas as direções e deslocando um incompreensível equilíbrio que a natureza insistia em nos impor.

quarta-feira, maio 23, 2007

URBE - 31

OUTONO

As formas belas, as formas feias, as desconcertantes formas. Sempre me interessei em saber o que determinava as formas dos objetos apreendidos por minha percepção. A realidade de descontar um cheque, um número para cada registro, um saldo para cada conta. Uma vela acesa em meio a tantas lâmpadas, perturbava-se a qualquer movimento sua chama. Como um espírito maléfico ela veio carregando sua fúria, excluiu minha música, criou um vento forte, quase apagou a vela, sua chama trêmula. Inquietou meu espírito e saiu levando seu ódio acumulado e o vento do sul. Aos poucos a normalidade do equilíbrio se restituiu em meu coração. Registrei a falsidade e a relatividade das coisas. O álcool misturou-se novamente à fumaça do cigarro. Apenas o vibrar tênue da porta batida em minha cara se deixava ouvir ecoando em algum lugar de minha mente.

Deitei-me no chão e relaxei profundamente controlando minha respiração. Inspirava, retinha o ar, expirava e retinha o diafragma contraído com pouco ar nos pulmões. Cada ato no mesmo intervalo de tempo, contava cada segundo concentrando-me apenas na respiração. Senti o corpo fundindo-se à terra até perder a identidade de ser. Passei a não-ser em etapas lentas e perceptíveis. Não me convenci, não adotei posições descartei todas as opiniões prévias. Poderia enganar-me por isso recuei a realidade da percepção. Qual a escolha certa? Como atingir a polipolaridade, sem antes ter experimentado a dualidade infinita? Mergulhei na solidão absoluta de estar presente neste universo sem fim. Senti o metal frio a passar pelos lábios.

O barco cortou as águas calmas do lago imprimindo uma rota em sua superfície homogênea. Rota que jamais se repetiria apesar de existir eternamente enquanto una. O passado-futuro-presente dependeriam, então, diretamente entre si, tornado-se unos mais uma vez. A incerteza de ter a raça sido criada sem objetivo aparente, a necessidade de objetivar, de criar um propósito divino incompreensível para a mente finita e humana. Além da perpetuação, um código, desde o mais simples e primitivo, protogênico ser, ao mais evoluído multiplamente diferenciado.

segunda-feira, maio 21, 2007

URBE - 30

VERÃO

Parei um instante ouvindo o som suave das folhas a cair chocando-se. Observei o trabalho das formigas, sempre gostei de observar seu trabalho, e com o dedo esmaguei algumas, sempre gostei de esmagar formigas também. Fixei os olhos em uma gota d’água prestes a cair e acompanhei sua trajetória até a absorção total. Vi cada fase de sua queda. No solo pude discernir sua divisão em milhares de gotículas e cada uma penetrando no solo absorvidas por ele. Evitei a monotonia do dia ansiando pelo fim da noite.

Troquei um corpo por um pedaço de papel. Às vezes fazia isso como uma forma de conseguir um contato humano sem me comprometer. Ri, diverti-me e admirei a beleza exterior que ela me mostrava apenas por estar presente. Do toque cálido a sentir a vida sob a pele. O calor sensual que queimava aos poucos subindo por meu corpo a cada toque em sua pele. Esquecemo-nos quem éramos, nos fundimos aos poucos em um só ser entregues sem conceitos aos nossos toques humanos e fomos levados pelo intenso prazer do momento sendo apenas macho e fêmea, homem e mulher, yin e yang.

Mais tarde enquanto refletia fumando um cigarro solitário em meu quarto milimetrei o espaço a minha volta. Minha mente confusa que não mais analisava palpitava intensamente passando de um pensamento a outro. A luz que penetrava no quarto à noite misturava-se aos ruídos vindos da rua inquietando meu ser. Grandes negócios, toneladas de papel. Carros novos, apartamentos também. Empregados que rodeavam, luxo, ostentação, comércio dirigido. Apenas as lembranças de tempos melhores.

Caminhando sem rumo, em silêncio, eu tocava a realidade com o olhar. O metal frio entortou a carne provocando um arrepio vindo da base da espinha fazendo-me despertar. O silêncio continuava, o ambiente esterilizado, pouco a pouco, aproximava-nos. A normalidade se mantinha até o próximo choque.

Milhões de seres humanos caminhavam, a mistura de suas vozes, pés no chão indecifrável som. Ônibus, carros, bicicletas, crianças, velhos, mulata, japonês, asfalto, cimento, discórdia. A sombra num canto. Quatro milhões e duzentos mil rostos em cinco meses, nem mesmo um dia para aliviar a tensão. Sol, vento, um pouco de chuva. O ciclo, a luz vermelha era trocada por uma verde. Os carros paravam, as pessoas atravessavam divididas em duas frentes de mesma direção e sentidos contrários. Trocava-se a luz verde pela vermelha. Início de operação, tempo de duração variável. Levava-se em conta o fluxo de carros.

Falei baixo, sussurrei, fiz sinais, não falei. Esperei que se cansasse e desistisse. Escondi-me, cobicei a vida alheia. Rodeei-me de valores, ouro principalmente. Desprezei os seres inferiores, exterminei-os quando possível. Eles nem sequer tinham uma alma para cultivar. Aprimorei meu intelecto e refleti. Não enfrentaria um olhar a menos que fosse para destruir. Menti, fingi. Suguei-lhes toda a energia e canalizei-a para meus objetivos. Nutri-me de suas mortes. Usei-os, pois para isso existiam.

Teci os fios separados, unindo-os entre si. Fios diferentes, tecidos em lugares diferentes, em condições diferentes, em tempos diferentes. Entrelacei-os, sem procurar o porque. Lembrei-me da gota d’água, sua pureza impura. Abriguei todo o ser nesse universo de água deslocando-o para nutri-lo. Viagem sem retorno, viagem sem fim.